quarta-feira, 20 de outubro de 2010

As palavras têm poder

Palavras que insultam*


Embora possamos insultar nosso semelhante com gestos e atitudes, o genuíno, o bom insulto é sempre verbal. Para molestar nosso ouvinte o máximo possível, dispomos de palavras humilhantes que valem como projéteis sonoros; há vocábulos especiais que ferem mais que pedras e porretes. Nossos primos, os animais, só podem manifestar sua ira e seu repúdio com agressões físicas que vão do coice à dentada; os símios, mais civilizados, já fazem caretas, uivam e guincham com escárnio. O popular bugio, ao jogar em cima de seu desafeto generosos punhados de excremento fresco, é o que mais perto chega do homem, pois nele já percebemos aquela intenção simbólica que caracteriza todos os insultos. Para a espécie humana, no entanto, o verdadeiro insulto nasceu quando nosso bisavô troglodita deixou cair o porrete e a pedra que trazia nas mãos e experimentou atingir seu oponente com alguma palavra bem cabeluda, vendo, com satisfação, que isso deixava o ouvinte furioso. Estava aberto o campo para a experimentação.
Essa evolução da agressão física para a verbal está presente na história do próprio vocábulo insulto. Em Latim, insultare significava, literalmente, “atacar, acometer alguém, pular sobre ele”. O ataque era puramente físico, sem envolver palavras (a não ser, talvez, por um ou outro grito de entusiasmo…). É significativo que este verbo fosse irmão de saltare, de onde recebemos assalto e salteador, entre outros. Pouco a pouco, os próprios romanos começaram a usar insultare no sentido de um ataque puramente verbal, como hoje conhecemos.  O insulto típico trata de atribuir ao insultado alguma qualidade reconhecidamente negativa. As áreas mais exploradas, na nossa cultura, são a pouca inteligência (burro, lorpa, estúpido, tolo, coió), a sanidade mental (louco, maluco, tantã), a prática de atos condenáveis (ladrão, vigarista, corrupto) e comportamento sexual visto como censurável (puta, veado, broxa). Como o insulto reflete um conjunto de crenças compartilhado por uma comunidade num determinado momento, é natural que de uma época para outra ou de uma região para outra haja consideráveis divergências entre o que é insultuoso ou não.  Da imensa lista de vocábulos que podem ser proferidos com intenção (e efeito!) insultuosa, destacamos alguns que têm uma história parecida: nasceram sem malícia, mas terminaram fazeram parte das ofensas mais comuns de nosso idioma. A Etimologia nos permite recuperar as origens, muitas vezes esquecidas, desses insultos consagrados, confirmados pelo uso de todos os brasileiros: idiota, imbecil, cretino, canalha, boçal, besta e otário
idiota — Quase cinco séculos antes de Cristo, o famoso Péricles classificou de idiotes (de idios, “separado, privado”) os cidadãos que se ocupavam exclusivamente com seus assuntos particulares e não se envolviam com os problemas de sua Cidade, de sua Pólis. A participação de todos nas decisões coletivas era a verdadeira essência da democracia ateniense; os que desertavam desse dever cívico eram, muito naturalmente, olhados com absoluto desprezo, e o vocábulo logo passou a ser usado como insulto. Além de designar esse isolamento dos maus cidadãos, idiotes terminou englobando também a idéia de alienação do mundo concreto e real. Finalmente, quando chegou a Roma, que trataria de difundi-lo por todas as línguas européias, o termo idiota já estava ligado, como hoje, à ignorância ou à debilidade mental.
imbecil — No sentido original que tinha no Latim, o vocábulo imbecillis significava “fraco, frágil”. A decisão de um juiz, o estado de espírito de um governante, uma mulher, uma criança pequena, a saúde de um cidadão — tudo isso poderia ser qualificado de imbecil, nesse sentido primitivo do termo. Até mesmo a terra estéril, sem força, podia ser imbecil. Pouco a pouco, a partir do séc. XVI, a palavra vai-se limitando a indicar a “fraqueza da inteligência”, “retardo mental”, embora Molière, na sua deliciosa Escola de Mulheres (1662), ainda use o termo com o antigo significado de “fraqueza”: “nada há de mais fraco ou imbecil”, diz ele das mulheres, e não é à sua inteligência que ele está se referindo. 
cretino — Veio de cristão. Em certos vales isolados dos Alpes Suíços, na Idade Média, a ausência de iodo na alimentação fez surgir um grande número de indivíduos deformados, com inteligência reduzida, quase anões, mirrados, pálidos e com a pele murcha. Para que a população os tratasse com compaixão, os padres da região lembravam sempre que estas infelizes criaturas também eram filhos de Deus, eram cristãos – em Francês, chrétien; no dialeto da região, cretin. A partir do séc. XIX, tornou-se uma das formas preferidas de insultar a inteligência alheia.
canalha — Insulto pesado, o preferido de Nelson Rodrigues. Veio do Italiano canaglia, literalmente “cachorrada” (de cane, “cão”) e designava, no seu sentido primitivo, a plebe, a ralé — aquilo que o Quico, do seriado do Chaves, chama de “gentalha”: “O público de Shakespeare era uma canalha irrequieta e barulhenta”. Hoje o termo perdeu o seu valor coletivo e passou a ser um insulto individual, tendo adquirido o sentido de “sujeito vil, traiçoeiro, sem princípios e sem caráter”.
boçal — Na América Espanhola e no Brasil, assim era chamado o escravo recém-chegado da África que só falava a sua língua nativa. Como não entendia (ou fingia não entender) o Português, era menor o seu valor como mercadoria no nefando comércio de escravos, já que não podia ser instruído em ofícios ou atividades mais complexas. O dicionário de Morais registra o uso do termo também com relação a animais não adestrados (cavalo boçal, elefante boçal). Desse sentido inicial de “inexperiente, não-treinado”, passou a ser um dos insultos mais pesados de nossa língua, significando “ignorante, estúpido”.
besta — Os animais de carga constituem um fonte abundante de palavras insultuosas. Para chamar alguém de grosseiro ou ignorante, acrescentando aquele toque ofensivo e humilhante indispensável ao bom insulto, servem tanto os genéricos (besta, quadrúpede, cavalgadura), como os mais específicos (asno, burro, mula, jerico, jumento, zebra). Se alguns destes vocábulos terminaram perdendo sua força agressiva pelo uso continuado, nosso idioma deu-nos várias maneiras de recuperar seu vigor inicial: besta quadrada, pedaço de asno, besta galega.
otário — Dizem que este termo nos veio através do lunfardo (a língua da malandragem de Buenos Aires). É mais um insulto extraído do mundo animal: os otários são os lobos e os leões-marinhos, primos da morsa, da foca e do elefante-marinho, encontráveis na Antártica e nas águas geladas do sul de nosso continente. Como todos os seus parentes, são animais pouco ágeis, extremamente lentos, com uma inegável aparência de tolos — daí o seu aproveitamento como ofensa.

* artigo publicado sob o título de “É a mãe!“, na revista Superinteressante (dez. 2001).



 






Palavras que invejamos

 
Quando aprendemos nossa língua materna, aprendemos também uma visão particular da realidade. Cada língua é uma janela que se abre para um ponto diferente da paisagem; quem espia o mundo pela janela do Inglês certamente não vai ter a mesma vista de quem usa a janela do Chinês. Por isso, é natural que existam vocábulos intraduzíveis de uma língua para outra, nascidos exatamente dessas diferenças de pontos de vista. Os estrangeiros nos invejam porque conseguimos, com a nossa saudade, exprimir num único vocábulo o que eles levam frases inteiras para dizer; basta ver como o Aurélio a define: “Lembrança nostálgica e, ao mesmo tempo, suave, de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada do desejo de tornar a vê-las ou possuí-las”. 
Bem que poderíamos propor uma troca: emprestamos saudade a eles, e eles nos emprestam algumas palavras que nos seriam de grande utilidade, como as que vamos ver a seguir. 
fisselig — em Alemão, significa “controlar o outro até fazê-lo ficar paralisado”. Ficamos fisselig quando a pressão com que somos observados é tão grande que nosso desempenho vai a zero. Quando o irmão mais velho resolve ensinar a irmã a dirigir, ele acaba dando tanta instrução e recomendação que a coitadinha, a seu lado, termina paralisando; ela ficou fisselig
mokita — num dialeto da Nova Guiné, designa uma “verdade que todo o mundo conhece, mas da qual ninguém ousa falar diretamente”. Dentro de uma família, por exemplo, há fatos desagradáveis, como o alcoolismo de um tio ou a debilidade de um primo, sobre os quais todos os parentes evitam falar. Em nome da convivência, é muitas vezes melhor que continue sendo mokita.
esprit de l’escalier — do Francês, significa literalmente “espírito da escadaria”. Designa aquela resposta esperta que só nos vem à mente quando o momento certo já passou. Só depois que nos afastamos com o rabo entre as pernas é que nos ocorre aquilo que poderíamos ter dito e que liquidaria a discussão; é tarde demais, porque já estamos “nas escadarias”. 
drachenfutter — em Alemão, significa literalmente “comida de dragão”. É assim que eles chamam as flores ou os bombons que o marido culpado compra para acalmar a esposa, antecipando a recepção que vai ter ao chegar em casa; a expressão não é muito carinhosa, como se vê.
dohada — em Sânscrito, designa “os estranhos desejos de uma grávida”. Uma das línguas mais antigas do planeta já tinha nome para aqueles súbitos desejos por alimentos esquisitos que acometem as gestantes do mundo inteiro. O povo sabe: pedir morango com picles ou lingüiça com doce-de-coco é sinal de gravidez. 
frotteur — em Francês, é literalmente “aquele que se esfrega”; designa aquele pervertido que aproveita as aglomerações e o aperto dos transportes coletivos para ficar se esfregando libidinosamente nos que têm o azar de ficar imprensados à sua frente. 
bustarella — em Italiano, “envelopezinho”. É uma maneira mais delicada de designar a propina, aquele dinheiro que se dá de suborno a um funcionário público a fim de apressar ou aprovar alguma coisa. Por ser um ato imoral e ilegal, os italianos cunharam essa expressão socialmente aceitável e altamente sugestiva (imagina-se o que vai dentro desse pequeno envelope). Na Itália de hoje, muita coisa pode ser conseguida com emprego de uma bustarella; aqui, devido ao gigantismo de nosso país, foram substituídas por malas e contêineres.
schadenfreude — em Alemão, significa “o prazer de ver a desgraça dos outros”, aquele componente um tanto sádico do nosso humor que nos faz rir das agressões entre os Três Patetas ou das videocacetadas da TV. Peter Gay, um historiador judeu, jamais esqueceu a schadenfreude que ia sentindo à medida que os nazistas foram perdendo as medalhas de ouro nas Olimpíadas de 1938.
qualunquismo — vem do italiano qualunque, “qualquer um”. Trata-se da indiferença do cidadão pelos assuntos políticos de seu país. Esta perigosa apatia política é uma tendência crescente das sociedades desenvolvidas, como se viu há pouco na altíssima abstenção das eleições na França. Traduz-se por frases do tipo “Para que votar, se todos os políticos são iguais?”, entre outras asneiras do gênero.
koyaanisqatsi — na língua dos índios Hopi, significa “a vida fora do equilíbrio”. Essa esquisita palavra indígena é perfeita para designar essas calamidades da natureza que o uso descontrolado da tecnologia pode ocasionar. O desequilíbrio ecológico causado por pesticidas ou a inversão térmica das grandes cidades são um triste exemplo de koyaanisqatsi — título, aliás, de um impressionante filme de denúncia, com a famosa trilha sonora de Phillip Glass.
ohrwurm — significa, no alemão, “verme do ouvido”; é uma excelente designação para aquela melodia ou aquela simples frase musical que se propaga, do dia para a noite, por toda uma população. Quando sentir que não consegue tirar uma música da cabeça, fique sabendo que foi infectado por um desses “vermes”. Isso acontece muito com a trilha sonora de comerciais ou, o que é pior, aquela musiquinha desagradável que anuncia a chegada do caminhão de gás. 

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