sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Jogos com palavras


O que distinguiu o ser humano dos outros animais do planeta foi a capacidade de criar a linguagem, esta maravilhosa construção simbólica que é a matéria-prima do próprio pensamento. Ler, falar, escrever e pensar — tudo é linguagem. Vivemos literalmente mergulhados num mar de palavras e estamos acostumados, desde pequenos, a olhar através delas para enxergar o mundo dos significados, da mesma forma que olhamos através da janela para enxergar a paisagem. Às vezes, no entanto, podemos fixar nosso olhar na própria vidraça: em vez de procurarmos o sentido de uma palavra, podemos examinar os sons, as letras ou os elementos que a constituem. Desligando um pouco nossa eterna preocupação com o significado, perceberemos então que existe uma outra faceta nas palavras que é — e sempre foi — uma fonte inesgotável de supresa e divertimento. Por exemplo, muitos podem não ter notado que a palavra anilina, que hoje serve para designar corantes dos mais variados matizes, provém de anil (azul); quantos, no entanto, perceberam que ela é um palíndromo, isto é, que pode ser lida de trás para frente, com o mesmo resultado? 
Quando libertamos a palavra de seu significado e prestamos atenção ao som, à estrutura e à grafia, abrimos um campo infinito de jogos, recombinando morfemas, descobrindo coincidências, permutando letras e sílabas. A criança decide quem vai começar a brincadeira por meio de jogos de escolha rimados, desprovidos de sentido, como “uni-duni-tê, salamê minguê“, ou “una, duna, tena, catena”, e se encanta com os trava-línguas, com o jogo da forca, com a língua do “P“, com os trocadilhos e as adivinhas. Os jogadores mais exigentes enfrentam as palavras cruzadas, as charadas, os anagramas, os palíndromos, os acrósticos, os lipogramas, entre dezenas de proezas e acrobacias verbais que o homem inventou para se divertir.  
palavra-valise — (ou palavra portmanteau) é aquela formada pela união de elementos de duas outras palavras. Geralmente se usa o início de uma e o final da outra. Trouxemos bit (binary digit) e motel (motor hotel) do inglês; aqui, formamos portunhol (português + espanhol), intelijumento (inteligente + jumento), estagflação (estagnação + inflação), aborrescente (adolescente + aborrecido). Millôr Fernandes iniciou a moda de montar palavras-valise imaginárias (cartomente – uma adivinha que nunca diz a verdade) ou interpretar palavras comuns como se tivessem essa dupla construção: cerveja — sonho de toda revista; melancólica — dor de barriga provocada por excesso de melão; presidiário — indivíduo preso todos os dias. 
spoonerismo — É um trocadilho em que ocorre uma troca de sons entre duas palavras, como transformar bola de gude em gula de bode. Seu nome vem de W. A. Spooner, um desastrado pregador britânico que ficou famoso por esses lapsos involuntários. Millôr tem uma hilariante versão da fábula do bode e da raposa, intitulada A baposa e o rode, totalmente escrita em spoonerismos. 
anagrama — Consiste em uma palavra obtida pela transposição das letras de outra; é indispensável que a nova palavra utilize exatamente as mesmas letras. Um bom anagrama deve ter o seu significado relacionado de alguma forma com a palavra original, algumas vezes com efeito satírico ofensivo. Os nomes Alice e Belisa, por exemplo, nasceram da recombinação das letras de Célia e Isabel, respectivamente. É clara a intenção simbólica de José de Alencar, ao batizar de Iracema — anagrama de América — a heroína de seu romance indianista, assim como é puro jogo de maledicência apontar que Axl Rose é o anagrama de oral sex e argentino é o anagrama de ignorante.
palíndromo — é a palavra ou frase que pode ser lida da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda. Este vocábulo é clássico, de origem grega; nele encontramos os elementos palin, “de novo”, mais dromo, percurso, circuito. Há palíndromos em simples palavras (Ana, anilina, arara, oco, osso, matutam, Oto, ovo, mirim, radar, rotor) ou em frases completas: “A grama é amarga” (Millôr), “Irene ri” (Caetano), “Assim a aia ia à missa” (Barão de Itararé), “Seco de raiva, coloco no colo caviar e doces” (Rômulo Marinho). De domínio público, temos “Roma me tem amor”, “Atai a gaiola, saloia gaiata” e o surrealista “Socorram-me, subi no ônibus em Marrocos“.
lipograma — Do grego lipo (”deixar, retirar”) e grama (”letra”). Eis uma boa definição lipogramática, com a letra E excluída: “Isto constitui um lipograma: uma oração, um parágrafo, um capítulo, um livro todinho composto faltando um dos nossos símbolos gráficos; no caso atual, omiti a vogal situada após o D“. O lipograma já era cultivado entre os gregos; no séc. XVII, o espanhol Alonso de Alcalá escreveu cinco novelas de amor que omitiam, sucessivamente, as cinco vogais no espanhol. O endiabrado George Perec (1938-1982), membro do Ou.Li.Po (grupo dedicado a jogos verbais e literários), escreveu o romance La Disparition (”O Desaparecimento”) omitindo a vogal “E“, a mais usada no Francês. 
pangrama — Texto que utiliza todas as letras do alfabeto (do grego pan, “todas”, e grama, “letra”) ao mesmo tempo. Um bom pangrama deve usar o menor número possível de letras e não ser desprovido de sentido. Quem sempre se interessou por este tipo de jogo foram os tipógrafos e os professores de datilografia, preocupados em acostumar os alunos com a totalidade do teclado. No inglês, a frase “The quick brown fox jumps over de lazy dog” (A lépida raposa marrom pula por cima do cachorro preguiçoso) tem oito falhas (oito letras repetidas), mas o seu simpático significado fez dela o exemplo mais conhecido de pangrama. 

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