quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Reeducar os sentidos


O absurdo da metáfora
 A estética surrealista nos ensinou a produzir emoções inesperadas usando elementos contraditórios
Braulio Tavares
A poesia fala por imagens inesperadas, que nos forçam a pensar em algo pela primeira vez. Dos recursos básicos à disposição do poeta (ideia, música, imagem) a imagem talvez seja o que nos produz o impacto maior à primeira leitura, porque nos evoca o mundo dos sentidos e nos faz de maneira indireta ter experiências visuais, auditivas, táteis etc. por meio da palavra.
Quando Manuel Bandeira diz (em "Cantilena") que "o céu parece de algodão" está produzindo uma imagem visual porque se trata de um dia chuvoso e nublado, e também tátil, porque o acúmulo de nuvens no céu lembra a textura do algodão. Subindo um degrau na escala das metáforas, o poeta Marcus Accioly (em "Os bichos") fala de "um céu de dragões entre espadas vermelhas". Aqui, a imagem não pode ser tomada ao pé da letra pois busca sugerir um pôr do sol nos vastos espaços sertanejos. Os dragões e as espadas existem como projeções figurativas do poeta sobre as formas abstratas das nuvens e dos raios do sol.
O Surrealismo dos anos 20 foi um movimento importante para libertar a poesia. Em torno do poeta André Breton e da revista La Révolution Surréaliste, poetas criaram manifestos, polêmicas, bateram-se contra a crítica literária, o governo e o clero em nome de uma libertação do Homem que ia além da linguagem poética. Apesar de nascido na literatura, o Surrealismo tornou-se mais conhecido durante o resto do século 20 pelo cinema de Luís Buñuel e pela pintura de Salvador Dalí, Max Ernst e outros. 

Sem censura
O objetivo dos surrealistas era reproduzir o mecanismo do pensamento humano, livre de censuras impostas pela estética, moral, lógica etc. Isso era obtido por meio da "escrita automática", em que o poeta escrevia depressa e sem pensar. A qualidade literária desses escritos era oscilante, mas Breton dizia que somos bitolados e deformados por fórmulas literárias antigas e que "é preciso limpar as estrebarias da mente". Outro recurso usado pelo grupo era o poema escrito ao acaso, em pedaços de papel onde cada poeta escrevia algo, dobrava e passava adiante. O resultado aleatório dessas palavras colocadas por cada um deles produzia frases de estranha beleza: "O cadáver delicado beberá vinho novo", "A ostra do Senegal comerá o pão tricolor" etc.

A poesia surrealista é feita de imagens desconexas, sem sentido.
O termo passou a fazer parte da nossa linguagem diária para exprimir qualquer situação absurda, como em "o Brasil é um país surreal". O impacto desse movimento se deu por meio do que poderíamos chamar, não de surrealismo puro, mas de surrealismo aplicado: a liberdade de usar imagens inesperadas, chocantes e aparentemente absurdas. O contato com as experiências surrealistas produziu em muitos poetas uma liberação imaginativa, enriquecendo seus recursos de comparação, de metáfora e de produção de imagens sensoriais.

Influências
Sem a influência do Surrealismo, talvez García Lorca não tivesse a liberdade de escrever versos como estes (que lembram os quadros de seu amigo Dalí): "Os morcegos nascem / das esferas. / E o bezerro os estuda / preocupado. / Quando será o crepúsculo / de todos os relógios? / Quando essas luas brancas / se fundirão aos montões?" ("A Selva dos Relógios"). Carlos Drummond não pode ser chamado de poeta surrealista, mas sem a liberação surrealista seria mais difícil que produzisse versos como estes de "Rola Mundo": "Vi o coração de moça / esquecido numa jaula. / Excremento de leão / apenas. E o circo distante. / Vi os tempos defendidos. / Eram de ontem e de sempre, / e em cada país havia / um muro de pedra e espanto, / e nesse muro pousada / uma pomba cega". Pablo Neruda também não escapou ao Surrealismo, presente não apenas nas imagens mas no espírito iconoclasta de "Walking Around": "(...) Seria belo / andar pelas rua empunhando um punhal verde / e dando gritos até morrer de frio". Talvez o grande poema-livro surrealista de nossa literatura seja a "Invenção de Orfeu", de Jorge de Lima: "Era um cavalo todo feito de lavas / recoberto de brasas e de espinhos. / Pelas tardes amenas ele vinha / e lia o mesmo livro que eu folheava".

Alongamento mental
O aparente absurdo da imagem surrealista típica nos leva a uma espécie de alongamento mental, a um esforço do intelecto e da sensibilidade para acomodar elementos disparatados. O ensaísta Ernst Fischer dizia que "a arte não é para passar por portas abertas, mas para abrir portas que estão fechadas". Esse absurdo poético cria novas associações de imagens e ideias, produz emoções surpreendentes por meio do choque de elementos contraditórios, forçando o leitor a reeducar sua sensibilidade.
Em seu livro-poema, Jorge de Lima fala no "planalto das cobras laminadas" e em "céu duende", imagens que, a um leitor de poesia de cem anos atrás, pareceriam sem sentido mas que, para um leitor de hoje, adquirem um suprassentido. O sentido de uma imagem poética resulta de um pacto entre autor e leitor, em que este assimila o choque inicial de surpresa e, dando ao poeta um crédito de confiança, busca dentro de si próprio as ressonâncias de sentido e de emoção que aquelas frases lhe despertam. Nunca serão as mesmas, é claro, mas um poema é isto, um gerador de múltiplas ressonâncias em múltiplos leitores.

Braulio Tavares é compositor, autor de Contando Histórias em Versos (Editora 34, 2005).

VELHA HISTÓRIA
Mário Quintana
     Era uma vez um homem que estava pescando, Maria. Até que apanhou um peixinho. Mas o peixinho era tão pequenino e inocente, e tinha um azulado tão indescritível nas escamas, que o homem ficou com pena. E retirou cuidadosamente o anzol e pincelou com iodo a garganta do coitadinho. Depois guardou-o no bolso traseiro das calças, para que o animalzinho sarasse no quente. E desde então ficaram inseparáveis. Aonde o homem ia, o peixinho o acompanhava, a trote, que nem um cachorrinho. Pelas calçadas. Pelos elevadores. Pelos cafés. Como era tocante vê-los no "17"! - o homem, grave, de preto, com uma das mãos segurando a xícara de fumegante moca, com a outra lendo o jornal, com a outra fumando, com a outra cuidando do peixinho, enquanto este, silencioso e levemente melancólico, tomava laranjada por um canudinho especial...
    Ora, um dia o homem e o peixinho passeavam à margem do rio onde o segundo dos dois fora pescado. E eis que os olhos do primeiro se encheram de lágrimas. E disse o homem ao peixinho:
"Não, não me assiste o direito de te guardar comigo. Por que roubar-te por mais tempo ao carinho do teu pai, da tua mãe, dos teus irmãozinhos, da tua tia solteira? Não, não e não! Volta para o seio da tua família. E viva eu cá na terra sempre triste..."
    Dito isto, verteu copioso pranto e, desviando o rosto, atirou o peixinho n'água. E a água fez um redemoinho, que foi depois serenando, serenando...até que o peixinho morreu afogado...
In "Poesias"

Observe os seguintes aspectos do texto de Quintana:
a)  O ilogismo de Quintana:  como o peixe que sai do rio, vive como um animal terrestre (e de estimação) e, quando volta para a água, morre.
b)  Em que momento a ironia está presente no texto?

c)  A construção das imagens poéticas:  “Mas o peixinho era tão pequenininho e inocente, e tinha um azulado tão indescritível nas escamas, que o homem ficou com pena.”
d) Melancolia: há identificação entre criatura e criador, levantando à seguinte reflexão: Já que o peixe é melancólico, tal qual o narrador, estaria Quintana se projetando no personagem?
e) Vocabulário: o uso de expressões desconhecidas no contexto semântico como “copioso pranto”, “serenando” “não me assiste”, “moca”, entre outras.
f) Exploração da construção frasal:  “Ora, um dia o homem e o peixinho passeavam à margem do rio onde o segundo dos dois fora pescado. E eis que os olhos do primeiro se encheram de lágrimas.”
g) Aproximação do texto com o Conto de Fadas, que pode ser percebido na expressão “Era uma vez...” e no título “Velha História”.


Brincando de fazer poesia

1. Escrita automática: Essa escrita consiste...
... em ter uma folha de papel, escrever tudo o que vem à cabeça, o mais rapidamente possível. Não parar para ler o que já se escreveu nem dar atenção ao respeito ou não que se está a ter pelas margens ou pelas normas de ortografia. Apenas se deve escrever, incessantemente, durante um determinado tempo ou até cansar. Caso algum bloqueio apareça, é escrevê-lo! O importante é não parar. No início a tendência é escrever coisas díspares, sem sentido (aparente), palavras ou frases soltas. Mas, com a prática, é possível escrever textos quase acabados, com abordagens originais, sinceras e criativas!

2. JOGO "CADÁVER ESQUISITO"
Um exercício bastante interessante é o Cadáver Esquisito que os escritores surrealistas praticavam como uma espécie de escrita automática. Consiste em passar uma folha em branco de aluno para aluno e cada um escreve o que bem quiser numa linha, mais ou menos. O importante é que, quando um escreve, o seguinte não veja, assim como o anterior.
Para isso, cada um escreve e dobra imediatamente o papel de cima para baixo, sendo que a folha vai se enrolando e escondendo as frases. O acaso das frases soltas, o contraste da junção de uma com outra, o traço lúdico do texto no conjunto criam uma atmosfera (tom) relativamente sugestiva que lembra a linguagem poética.

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