segunda-feira, 15 de abril de 2013

Escrever, por quê?


Escrever, por quê?

Por que escrevo: como encontrar algo de original para dizer na décima, na quinquagésima ou centésima vez, sendo atenciosa como qualquer pessoa merece, sobretudo um estudante ou profissional das perguntas?
A resposta direta seria: escrevo porque sou ambivalente, insegura e desejosa de cumplicidade.
Mas, com uma pontinha de malícia, às vezes dou uma resposta torta: a questão não é por quê, mas “sobre o que escrevo”.
De que falo, então, ao fazer minha literatura?
Um dos rótulos usados em relação a isso é “ela escreve sobre mulheres”. Constatação falhada, pois mulheres não são meus personagens exclusivos, nem mesmo os mais elaborados: são homens e crianças, casas com sótão e porões, dramas ou banalidade. Falo também do estranho atrás de portas, mortos que vagam e vivos que amam ou esperam.
Escrevo sobre o que me assombra, às vezes desde a infância.
Escrever para mim é sobretudo indagar: continuo a menina perguntadeira que perturbava os almoços familiares querendo saber tudo, qualquer coisa, o tempo todo. Portanto, escrevo para obter respostas que – eu sei – não existem... por isso continuo escrevendo.
E escrevo sobre possibilidades de ser mais feliz – isso, eu sei também, depende um pouco de cada um de nós, de nossa honradez interior, nossa fé no ser humano, nosso compromisso com a dignidade. De sorte, e de decisões que muitas vezes só anos depois poderemos avaliar.
Falo do que somos: nobres e vulgares, sonhadores e consumidores, soprados de esperança e corroídos de terror, generosos e tantas vezes mesquinhos. Invento para minhas criaturas muito mais do que expresso em linhas ou silêncios – sempre o mais importante de um texto meu. Mesmo que nem mencione, sei se aquela mulher usa algodão ou sedas, se a escada range quando ela caminha – ainda que nenhum desses detalhes apareça no romance. Conheço a solidão daquele homem, se cultiva medos secretos, se pensa na morte, se desejaria ser mais amado.
E quando começo a “ser” essa pessoa, quando o clima da obra me envolve e arrasta, chegou o momento em que o livro quer ser escrito. Então estarei aberta a ele, escutando o que se passa no meu interior. Boa parte do que eu escrevo brota desse caldeirão de bruxas que é inconsciente e lucidez, memória e invenção, susto e amadurecimento.
São meus e não são, esses vultos com seus destinos e desatinos – que armo e desarmo. De repente aí estão meus personagens: um olho, o contorno de um perfil, um gesto, um riso ou uma tragédia, um silêncio e uma solidão. Persigo a sua busca de significados.
Escrevo porque tenho prazer em elaborar com palavras tantos destinos cujo fio nasce em mim, produzindo novelos para que eu trabalhe minhas tapeçarias.
Escrevo para seduzir leitores: venham ser cúmplices da minha perplexidade fundamental, essa que me move.
Não se pode esquecer também que escrevo propondo uma releitura dos valores familiares e sociais de meu tempo: cada um de meus romances pode e deve ser lido como uma denúncia da hipocrisia, da superficialidade e da mentira nos tipos de relacionamento mais estranhos ou mais comuns. Não é apenas o imponderável e misterioso que me interessa, mas o grande desencontro humano.
O escritor fala pelos outros. Trabalha para que os outros sonhem ou enxerguem melhor coisas que nem ele próprio adivinha – estão além de sua visão, mas dentro do seu pressentimento.
Talvez seja essa a função de toda a arte (se é que ela tem alguma): a libertação e o crescimento de quem a exerce e de quem a vai contemplar.
Nessa medida a pessoa do escritor é desimportante, valem os questionamentos que faz, e a forma com que elabora em textos a nossa essencial contradição – matéria viva de sua contemplação e arte.
(LUFT, Lya. Pensar é transgredir. Rio de Janeiro: Record, 2004. p.179-181.)
                                                        


1) Segundo Lya Luft, ela escreve porque é ambivalente, insegura e desejosa de cumplicidade. Assinale o item que não confirma essa afirmativa.
A) “(...) como encontrar algo de original para dizer na décima, na quinquagésima ou centésima vez, sendo atenciosa como qualquer pessoa merece, sobretudo um estudante ou profissional das perguntas?” (1º §)
B) “Falo do que somos: nobres e vulgares, sonhadores e consumidores, soprados de esperança e corroídos de terror, generosos e tantas vezes mesquinhos.” (9º §)
C) “Escrevo para seduzir leitores: venham ser cúmplices da minha perplexidade fundamental, essa que me move.” (13º §)
D) “Não é apenas o imponderável e misterioso que me interessa, mas o grande desencontro humano.” (14º §)

2) Há uma passagem em que a cronista parece não falar do leitor, mas com o leitor. Assinale a alternativa que comprova a afirmativa.
A) “Escrevo para seduzir leitores: venham ser cúmplices da minha perplexidade fundamental, essa que me move.” (13º §)
B) “Por que escrevo: como encontrar algo de original (...) sendo atenciosa como qualquer pessoa merece, sobretudo um estudante ou profissional das perguntas?” (1º §)
C) “Talvez seja essa a função de toda a arte (se é que ela tem alguma): a libertação e o crescimento de quem a exerce e de quem a vai contemplar.” (16º §)
D) “O escritor fala pelos outros. Trabalha para que os outros sonhem ou enxerguem melhor coisas que nem ele próprio adivinha – estão além de sua visão, mas dentro do seu pressentimento.” (15º §)

3) Levando em conta a discussão sobre a concepção de leitura e os três últimos parágrafos da crônica, assinale a opção que corresponde à visão de leitura da cronista.
A) O sujeito é o senhor absoluto de suas ações e de seu dizer e o texto é um produto, cabendo ao leitor um papel passivo, de captador ou receptor das intenções do autor.
B) O sujeito é assujeitado pelo sistema, e o texto é um produto da codificação de um emissor a ser decodificado pelo leitor, sendo necessário a este, para tanto, o conhecimento do código utilizado.
C) Os sujeitos ativos se constroem e são construídos no texto, que é o lugar da interação e da constituição dos interlocutores. O sentido do texto é construído na interação texto-sujeitos.
D) O sujeito é caracterizado por uma não consciência, já que o princípio explicativo de qualquer fenômeno e de todo e qualquer comportamento individual repousa sobre a consideração do sistema.

4) Há dois momentos que se destacam e se emaranham no seu decorrer: o motivo da escritura e o assunto da escritura. Assinale a afirmação que não define o tema.
A) “Talvez seja essa a função de toda a arte (se é que ela tem alguma): a libertação e o crescimento de quem a exerce e de quem a vai contemplar.” (16º §)
B) “Escrevo sobre o que me assombra, às vezes desde a infância.” (6º §)
C) “Invento para minhas criaturas muito mais do que expresso em linhas ou silêncios – sempre o mais importante de um texto meu.” (9º §)
D) “Portanto, escrevo para obter respostas que – eu sei – não existem... por isso continuo escrevendo.” (7º §)

5) A cronista define a matéria com a qual trabalha como “a nossa essencial contradição” e ela mesma, durante toda a crônica, demonstra a existência desse desencontro dentro de si. Assinale o item que não confirma essa constatação.
A) “Boa parte do que eu escrevo brota desse caldeirão de bruxas que é inconsciente e lucidez, memória e invenção, susto e amadurecimento.” (10º §)
B) “(...) escrevo para obter respostas que – eu sei – não existem... por isso continuo escrevendo.” (7º §)
C) “Escrevo porque tenho prazer em elaborar com palavras tantos destinos cujo fio nasce em mim, produzindo novelos para que eu trabalhe minhas tapeçarias.” (12º §)
D) “... venham ser cúmplices da minha perplexidade fundamental, essa que me move.” (13º §)

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