Só textos







Os degraus
Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas ao sótão - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na sua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...
Mário Quintana


Eu sei, mas não devia
Marina Colasanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.



Marina Colasanti
nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.

O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.




Famigerado
Foi de incerta feita — o evento. Quem pode esperar coisa tão sem pés nem cabeça? Eu estava em casa, o arraial sendo de todo tranqüilo. Parou-me à porta o tropel. Cheguei à janela.Um grupo de cavaleiros. Isto é, vendo melhor: um cavaleiro rente, frente à minha porta, equiparado, exato; e, embolados, de banda, três homens a cavalo. Tudo, num relance, insolitíssimo. Tomei-me nos nervos. O cavaleiro esse — o oh-homem-oh — com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. Saudou-me seco, curto pesadamente. Seu cavalo era alto, um alazão; bem arreado, ferrado, suado. E concebi grande dúvida.
Nenhum se apeava. Os outros, tristes três, mal me haviam olhado, nem olhassem para nada. Semelhavam a gente receosa, tropa desbaratada, sopitados, constrangidos coagidos, sim. Isso por isso, que o cavaleiro solerte tinha o ar de regê-los: a meio-gesto, desprezivo, intimara-os de pegarem o lugar onde agora se encostavam. Dado que a frente da minha casa reentrava, metros, da linha da rua, e dos dois lados avançava a cerca, formava-se ali um encantoável, espécie de resguardo. Valendo-se do que, o homem obrigara os outros ao ponto donde seriam menos vistos, enquanto barrava-lhes qualquer fuga; sem contar que, unidos assim, os cavalos se apertando, não dispunham de rápida mobilidade. Tudo enxergara, tomando ganho da topografia. Os três seriam seus prisioneiros, não seus sequazes. Aquele homem, para proceder da forma, só podia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe. Senti que não me ficava útil dar cara amena, mostras de temeroso. Eu não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia. O medo é a extrema ignorância em momento muito agudo. O medo O. O medo me miava. Convidei-o a desmontar, a entrar.
Disse de não, conquanto os costumes. Conservava-se de chapéu. Via-se que passara a descansar na sela — decerto relaxava o corpo para dar-se mais à ingente tarefa de pensar. Perguntei: respondeu-me que não estava doente, nem vindo à receita ou consulta. Sua voz se espaçava, querendo-se calma; a fala de gente de mais longe, talvez são-franciscano. Sei desse tipo de valentão que nada alardeia, sem farroma. Mas avessado, estranhão, perverso brusco, podendo desfechar com algo, de repente, por um és-não-és. Muito de macio, mentalmente, comecei a me organizar. Ele falou:
"Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada..."
Carregara a celha. Causava outra inquietude, sua farrusca, a catadura de canibal. Desfranziu-se, porém, quase que sorriu. Daí, desceu do cavalo; maneiro, imprevisto. Se por se cumprir do maior valor de melhores modos; por esperteza? Reteve no pulso a ponta do cabresto, o alazão era para paz. O chapéu sempre na cabeça. Um alarve. Mais os ínvios olhos. E ele era para muito. Seria de ver-se: estava em armas — e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de notar-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, todo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada momento. Tivesse aceitado de entrar e um café, calmava-me. Assim, porém, banda de fora, sem a-graças de hóspede nem surdez de paredes, tinha para um se inquietar, sem medida e sem certeza.
— "Vosmecê é que não me conhece. Damázio, dos Siqueiras... Estou vindo da Serra..."
Sobressalto. Damázio, quem dele não ouvira? O feroz de estórias de léguas, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo. Constando também, se verdade, que de para uns anos ele se serenara — evitava o de evitar. Fie-se, porém, quem, em tais tréguas de pantera? Ali, antenasal, de mim a palmo! Continuava:
— "Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado..."
Com arranco, calou-se. Como arrependido de ter começado assim, de evidente. Contra que aí estava com o fígado em más margens; pensava, pensava. Cabismeditado. Do que, se resolveu. Levantou as feições. Se é que se riu: aquela crueldade de dentes. Encarar, não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ão, travados assuntos, inseqüentes, como dificultação. A conversa era para teias de aranha. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava: E, pá:
— "Vosmecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmisgerado... faz-megerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?
Disse, de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda a rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que muito, pois, que aqui ele se famanasse, vindo para exigir-me, rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação?
— "Saiba vosmecê que saí ind'hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro..."
Se sério, se era. Transiu-se-me.
— "Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo — o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe perguntei?"
Se simples. Se digo. Transfoi-se-me. Esses trizes:
— Famigerado?
— "Sim senhor..." — e, alto, repetiu, vezes, o termo, enfim nos vermelhões da raiva, sua voz fora de foco. E já me olhava, interpelador, intimativo — apertava-me. Tinha eu que descobrir a cara. — Famigerado? Habitei preâmbulos. Bem que eu me carecia noutro ínterim, em indúcias. Como por socorro, espiei os três outros, em seus cavalos, intugidos até então, mumumudos. Mas, Damázio:
— "Vosmecê declare. Estes aí são de nada não. São da Serra. Só vieram comigo, pra testemunho..."Só tinha de desentalar-me. O homem queria estrito o caroço: o verivérbio.
— Famigerado é inóxio, é "célebre", "notório", "notável"...
— "Vosmecê mal não veja em minha grossaria no não entender. Mais me diga: é desaforado? É caçoável? É de arrenegar? Farsância? Nome de ofensa?"
— Vilta nenhuma, nenhum doesto. São expressões neutras, de outros usos...
— "Pois... e o que é que é, em fala de pobre, linguagem de em dia-de-semana?"
— Famigerado? Bem. É: "importante", que merece louvor, respeito...
— "Vosmecê agarante, pra a paz das mães, mão na Escritura?"
Se certo! Era para se empenhar a barba. Do que o diabo, então eu sincero disse:
— Olhe: eu, como o sr. me vê, com vantagens, hum, o que eu queria uma hora destas era ser famigerado — bem famigerado, o mais que pudesse!...
— "Ah, bem!..." — soltou, exultante.
Saltando na sela, ele se levantou de molas. Subiu em si, desagravava-se, num desafogaréu. Sorriu-se, outro. Satisfez aqueles três: — "Vocês podem ir, compadres. Vocês escutaram bem a boa descrição..." — e eles prestes se partiram. Só aí se chegou, beirando-me a janela, aceitava um copo d'água. Disse: — "Não há como que as grandezas machas duma pessoa instruída!" Seja que de novo, por um mero, se torvava? Disse: — "Sei lá, às vezes o melhor mesmo, pra esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não..." Mas mais sorriu, apagara-se-lhe a inquietação. Disse: — "A gente tem cada cisma de dúvida boba, dessas desconfianças... Só pra azedar a mandioca..." Agradeceu, quis me apertar a mão. Outra vez, aceitaria de entrar em minha casa. Oh, pois. Esporou, foi-se, o alazão, não pensava no que o trouxera, tese para alto rir, e mais, o famoso assunto.
(Extraído do livro Primeiras Estórias, Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 13.)


O dia que Júpiter encontrou Saturno
Caio Fernando Abreu

Foi a primeira pessoa que viu quando entrou. Tão bonito que ela baixou os olhos, sem querer querendo que ele também a tivesse visto. Deram-lhe um copo de plástico com vodka, gelo e uma casquinha de limão. Ela triturou a casquinha entre os dentes, mexendo o gelo com a ponta do indicador, sem beber. Com a movimentação dos outros, levantando o tempo todo para dançar rocks barulhentos ou afundar nos quartos onde rolavam carreiras e baseados, devagarinho conquistou uma cadeira de junco junto a janela. A noite clara lá fora estendida sobre Henrique Schaumann, a avenida poncho & conga, riu sozinha. Ria sozinha quase o tempo todo, uma moça magra querendo controlar a própria loucura, discretamente infeliz. Molhou os lábios na vodka tomando coragem de olhar para ele, um moço queimado de sol e calças brancas com a barra descosturada. Baixou outra vez os olhos, embora morena também, e suspirou soltando os ombros, coluna amoldando-se ao junco da cadeira. Só porque era sábado e não ficaria, desta vez não, parada entre o som, a televisão e o livro, atenta ao telefone silencioso. Sorriu olhando em volta, muito bem, parabéns, aqui estamos.

Não que estivesse triste, só não sentia mais nada.

Levemente, para não chamar atenção de ninguém, girou o busto sobre a cintura, apoiando o cotovelo direito sobre o peitoril da janela. Debruçou o rosto na palma da mão, os cabelos lisos caíram sobre o rosto. para afastá-los, ela levantou a cabeça, e então viu o céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito próximos. Vista assim parecia não uma moça vivendo, mas pintada em aquarela, estatizada feito estivesse muito calma, e até estava, só não sentia mais nada, fazia tempo. Quem sabe porque não evidenciava nenhum risco parada assim, meio remota, o moço das calças brancas veio se aproximando sem que ela percebesse.

Parado ao lado dela, vistos de dentro, os dois pintados em aquarela - mas vistos de fora, das janelas dos carros procurando bares na avenida, sombras chinesas recortadas contra a luz vermelha.

E de repente o rock barulhento parou e a voz de John Lennon cantou every dau, every way is getting better and better. Na cabeça dela soaram cinco tiros. Os olhos subitamente endurecidos da moça voltaram-se para dentro, esbarrando nos olhos subitamente endurecidos dos moço. As memórias que cada um guardava, e eram tantas, transpareceram tão nitidamente nos olhos que ela imediatamente entendeu quando ele a tocou no ombro.

-Você gosta de estrelas?
-Gosto. Você também?
-Também. Você está olhando a lua?
-Quase cheia. Em Virgem.
-Amanhã faz conjunção com Júpiter.
-Com Saturno também.
-Isso é bom?
-Eu não sei. Deve ser.
-É sim. Bom encontrar você.
-Também acho.

(Silêncio)

-Você gosta de Júpiter?
-Gosto. Na verdade "desejaria viver em Júpiter onde as almas são puras e a transa é outra".
-Que é isso?
-Um poema de um menino que vai morrer.
-Como é que você sabe?
-Em fevereiro, ele vai se matar em fevereiro.

(Silêncio)

-Você tem um cigarro?
-Estou tentando parar de fumar.
-Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora.
-Você tem uma coisa nas mãos agora.
-Eu?
-Eu.

(Silêncio)

-Como é que você sabe?
-O quê?
-Que o menino vai se matar.
-Sei de muitas coisas. Algumas nem aconteceram ainda.
-Eu não sei nada.
-Te ensino a saber, não a sentir. Não sinto nada, já faz tempo.
-Eu só sinto, mas não sei o que sinto. Quando sei, não compreendo.
-Ninguém compreende.
-Às vezes sim. Eu te ensino.
-Difícil, morri em dezembro. Com cinco tiros nas costas. Você também.
-Também, depois saí do corpo. Você já saiu do corpo?

(Silêncio)

-Você tomou alguma coisa?
-O quê?
-Cocaína, morfina, codeína, mescalina, heroína, estenamina, psilocibina, metedrina.
-Não tomei nada. Não tomo mais nada.
-Nem eu. Já tomei tudo.
-Tudo?
-Cogumelos têm parte com o diabo.
-O ópio aperfeiçoa o real
-Agora quero ficar limpa. De corpo, de alma. Não quero sair do corpo.

(Silêncio)

-Acho que estou voltando. Usava saias coloridas, flores nos cabelos.
-Minha trança chegava até a cintura. As pulseiras cobriam os braços.
-Alguma coisa se perdeu.
-Onde fomos? Onde ficamos?
-Alguma coisa se encontrou.
-E aqueles guizos?
-E aquelas fitas?
-O sol já foi embora.
-A estrada escureceu.
-Mas navegamos.
-Sim. Onde está o Norte?
-Localiza o Cruzeiro do Sul. Depois caminha na direção oposta.

(Silêncio)

-Você é de Virgem?
-Sou. E você, de Capricórnio?
-Sou. Eu sabia.
-Eu sabia também.
-Combinamos: terra.
-Sim. Combinamos.

(Silêncio)

-Amanhã vou embora para Paris.
-Amanhã vou embora para Natal.
-Eu te mando um cartão de lá.
-Eu te mando um cartão de lá.
-No meu cartão vai ter uma pedra suspensa sobre o mar.
-No meu não vai ter pedra, só mar. E uma palmeira debruçada.

(Silêncio)

-Vou tomar chá de ayahuasca e ver você egípcia. Parada do meu lado, olhando de perfil.
-Vou tomar chá de datura e ver você tuaregue. Perdido no deserto, ofuscado pelo sol.
-Vamos nos ver?
-No teu chá. No meu chá.

(Silêncio)

-Quando a noite chegar cedo e a neve cobrir as ruas, ficarei o dia inteiro na cama pensando em dormir com você.
-Quando estiver muito quente, me dará uma moleza de balançar devagarinho na rede pensando em dormir com você.
-Vou te escrever carta e não te mandar.
-Vou tentar recompor teu rosto sem conseguir.
-Vou ver Júpiter e me lembrar de você.
-Vou ver Saturno e me lembrar de você.
-Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar.
-O tempo não existe.
-O tempo existe, sim, e devora.
-Vou procurar teu cheiro no corpo de outra mulher. Sem encontrar, porque terei esquecido. Alfazema?
-Alecrim. Quando eu olhar a noite enorme do Equador, pensarei se tudo isso foi um encontro ou uma despedida.
-E que uma palavra ou um gesto, seu ou meu, seria suficiente para modificar nossos roteiros.

(Silêncio)

-Mas não seria natural.
-Natural é as pessoas se encontrarem e se perderem.
-Natural é encontrar. Natural é perder.
-Linhas paralelas se encontram no infinito.
-O infinito não acaba. O infinito é nunca.
-Ou sempre.

(Silêncio)

-Tudo isso é muito abstrato. Está tocando "Kiss, kiss, kiss". Por que você não me convida para dormirmos juntos.
-Você quer dormir comigo?
-Não.
-Porque não é preciso?
-Porque não é preciso.

(Silêncio)

-Me beija.
-Te beijo.

Foi a última pessoa que viu ao sair. Tão bonita que ele baixou os olhos, sem saber sabendo que ela também o tinha visto. Desceu pelo elevador, a chave do carro na mão. Rodou a chave entre os dedos, depois mordeu leve a ponta metálica, amarga. Os olhos fixos nos andares que passavam, sem prestar atenção nos outros que assoavam narizes ou pingavam colírios. Devagarinho, conquistou o espaço junto à porta. Os ruídos coados de festas e comandos da madrugada nos outros apartamentos, festas pelas frestas, riu sozinho. Ria sozinho quase sempre, um moço queimado de sol, com a barra branca das calças descosturadas, querendo controlar a própria loucura, discretamente infeliz.

Mordeu a unha junto com a chave, lembrando dela, uma moça magra de cabelos lisos junto à janela. Baixou outra vez os olhos, embora magro também. E suspirou soltando os ombros, pés inseguros comprimindo o piso instável do elevador. Só porque era sábado, porque estava indo embora, porque as malas restavam sem fazer e o telefone tocava sem parar. Sorriu olhando em volta.

Não que estivesse triste, só não compreendia o que estava sentindo.

Levemente, para não chamar a atenção de ninguém, apertou os dedos da mão direita na porta aberta do elevador e atravessou o saguão de lado, saindo para a rua. Apoiou-se no poste da esquina, o vento esvoaçando os cabelos, e para evitá-lo ele então levantou a cabeça e viu o céu. Um céu tão claro que não era o céu normal de Sampa, com uma lua quase cheia e Júpiter e Saturno muito próximos. Visto assim parecia não um moço vivendo, mas pintado num óleo de Gregório Gruber, tão nítido estava ressaltado contra o fundo da avenida, e assim estava, mas sem compreender, fazia tempo. Quem sabe porque não evidenciava nenhum risco, a moça debruçou-sena janela lá em cima e gritou alguma coisa que ele não chegou a ouvir. Parado longe dela, a moça visível apenas da cintura para cima parecia um fantoche de luva, manipulado por alguém escondido, o moço no poste agitando a cabeça, uma marionete de fios, manipulada por alguém escondido.

De repente um carro freou atrás dele, o rádio gritando "se Deus quiser, um dia acabo voando". Na cabeça dele soaram cinco tiros. De onde estava, não conseguiria ver os olhos da moça. De onde estava, a moça não conseguiria ver os olhos dele. Mas as memórias de cada um eram tantas que ela imediatamente entendeu e aceitou, desaparecendo da janela no exato instante em que ele atravessou a avenida sem olhar para trás.

Do livro Morangos mofados
O arquivo

No fim de um ano de trabalho, joão obteve uma redução de quinze por cento em seus vencimentos. joão era moço. Aquele era seu primeiro emprego. Não se mostrou orgulhoso, embora tenha sido um dos poucos contemplados. Afinal, esforçara-se. Não tivera uma só falta ou atraso. Limitou-se a sorrir, a agradecer ao chefe.
No dia seguinte, mudou-se para um quarto mais distante do centro da cidade. Com o salário reduzido, podia pagar um aluguel menor.
Passou a tomar duas conduções para chegar ao trabalho. No entanto, estava satisfeito. Acordava mais cedo, e isto parecia aumentar-lhe a disposição.
Dois anos mais tarde, veio outra recompensa.
O chefe chamou-o e lhe comunicou o segundo corte salarial.
Desta vez, a empresa atravessava um período excelente. A redução foi um pouco maior: dezessete por cento.
Novos sorrisos, novos agradecimentos, nova mudança.
Agora joão acordava às cinco da manhã. Esperava três conduções. Em compensação, comia menos. Ficou mais esbelto. Sua pele tornou-se menos rosada. O contentamento aumentou.
Prosseguiu a luta.
Porém, nos quatro anos seguintes, nada de extraordinário aconteceu.
joão preocupava-se. Perdia o sono, envenenado em intrigas de colegas invejosos. Odiava-os. Torturava-se com a incompreensão do chefe. Mas não desistia. Passou a trabalhar mais duas horas diárias.
Uma tarde, quase ao fim do expediente, foi chamado ao escritório principal.
Respirou descompassado.
— Seu joão. Nossa firma tem uma grande dívida com o senhor.
joão baixou a cabeça em sinal de modéstia.
— Sabemos de todos os seus esforços. É nosso desejo dar-lhe uma prova substancial de nosso reconhecimento.
O coração parava.
— Além de uma redução de dezesseis por cento em seu ordenado, resolvemos, na reunião de ontem, rebaixá-lo de posto.
A revelação deslumbrou-o. Todos sorriam.
— De hoje em diante, o senhor passará a auxiliar de contabilidade, com menos cinco dias de férias. Contente?
Radiante, joão gaguejou alguma coisa ininteligível, cumprimentou a diretoria, voltou ao trabalho.
Nesta noite, joão não pensou em nada. Dormiu pacífico, no silêncio do subúrbio.Mais uma vez, mudou-se. Finalmente, deixara de jantar. O almoço reduzira-se a um sanduíche. Emagrecia, sentia-se mais leve, mais ágil. Não havia necessidade de muita roupa. Eliminara certas despesas inúteis, lavadeira, pensão.
Chegava em casa às onze da noite, levantava-se às três da madrugada. Esfarelava-se num trem e dois ônibus para garantir meia hora de antecedência. A vida foi passando, com novos prêmios.
Aos sessenta anos, o ordenado equivalia a dois por cento do inicial. O organismo acomodara-se à fome. Uma vez ou outra, saboreava alguma raiz das estradas. Dormia apenas quinze minutos. Não tinha mais problemas de moradia ou vestimenta. Vivia nos campos, entre árvores refrescantes, cobria-se com os farrapos de um lençol adquirido há muito tempo.
O corpo era um monte de rugas sorridentes.
Todos os dias, um caminhão anônimo transportava-o ao trabalho. Quando completou quarenta anos de serviço, foi convocado pela chefia:
— Seu joão. O senhor acaba de ter seu salário eliminado. Não haverá mais férias. E sua função, a partir de amanhã, será a de limpador de nossos sanitários.
O crânio seco comprimiu-se. Do olho amarelado, escorreu um líquido tênue. A boca tremeu, mas nada disse. Sentia-se cansado. Enfim, atingira todos os objetivos. Tentou sorrir:— Agradeço tudo que fizeram em meu benefício. Mas desejo requerer minha aposentadoria.O chefe não compreendeu:
— Mas seu joão, logo agora que o senhor está desassalariado? Por quê? Dentro de alguns meses terá de pagar a taxa inicial para permanecer em nosso quadro. Desprezar tudo isto? Quarenta anos de convívio? O senhor ainda está forte. Que acha?
A emoção impediu qualquer resposta.
joão afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu, ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia duas arestas. Tornou-se cinzento.
João transformou-se num arquivo de metal.

(Texto publicado originalmente no livro O Necrológio e incluído por Ítalo Moricone em Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, Editora Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 382)



O crime do professor de matemática
Clarice Lispector
Quando o homem atingiu a colina mais alta, os sinos tocavam na cidade embaixo. Viam-se apenas os tetos irregulares das casas. Perto dele estava à única árvore da chapada. O homem estava de pé com um saco pesado na mão.
Olhou para baixo com olhos míopes. Os católicos entravam devagar e miúdos na igreja, e ele procurava ouvir as vozes esparsas das crianças espalhadas na praça. Mas apesar da limpidez da manhã os sons mal alcançavam o planalto. Via também o rio que de cima parecia imóvel, e pensou: é domingo. Viu ao longe a montanha mais alta com as escarpas secas. Não fazia frio, mas ele ajeitou o paletó agasalhando-se melhor. Afinal pousou com cuidado o saco no chão. Tirou os óculos talvez para respirar melhor porque, com os óculos na mão, respirou muito fundo. A claridade batia nas lentes que enviaram sinais agudos. Sem os óculos, seus olhos piscaram claros, quase jovens, infamiliares. Pôs de novo os óculos, tornou-se um senhor de meia-idade e pegou de novo no saco: pesava como se fosse de pedra, pensou. Forçou a vista para perceber a correnteza do rio, inclinou a cabeça para ouvir algum ruído: o rio estava parado e apenas o som mais duro de uma voz atingiu por um instante a altura — sim, ele estava bem só. O ar fresco era inóspito, ele que morara numa cidade mais quente. A única árvore da chapada balançava os ramos. Ele olhou-a. Ganhava tempo. Até que achou que não havia porque esperar mais.
 E no entanto aguardava. Certamente os óculos o incomodavam porque de novo os tirou, respirou fundo e guardou-os no bolso.
 Abriu então o saco, espiou um pouco. Depois meteu dentro a mão magra e foi puxando o cachorro morto. Todo ele se concentrava apenas na mão importante e ele mantinha os olhos profundamente fechados enquanto puxava. Quando os abriu, o ar estava ainda mais claro e os sinos alegres tocaram novamente chamando os fiéis para o consolo da punição.
O cachorro desconhecido estava à luz.
Então ele se pôs metodicamente a trabalhar. Pegou no cachorro duro e negro, depositou-o numa baixa do terreno. Mas, como se já tivesse feito muito, pôs os óculos, sentou-se ao lado do cão e começou a observar a paisagem.
 Viu muito claramente, e com certa inutilidade, a chapada deserta. Mas observou com precisão que estando sentado já não enxergava a cidadezinha embaixo. Respirou de novo. Remexeu no saco e tirou a pá. E pensou no lugar que escolheria. Talvez embaixo da árvore. Surpreendeu-se refletindo que embaixo da árvore enterraria este cão. Mas se fosse o outro, o verdadeiro cão, enterrá-lo-ia na verdade onde ele próprio gostaria de ser sepultado se estivesse morto: no centro mesmo da chapada, a encarar de olhos vazios o sol. Então, já que o cão desconhecido substituía o “outro”, quis que ele, para maior perfeição do ato, recebesse precisamente o que o outro receberia. Não havia nenhuma confusão na cabeça do homem. Ele se entendia a si próprio com frieza, sem nenhum fio solto.
Em breve, por excesso de escrúpulo, estava ocupado demais em procurar determinar rigorosamente o meio da chapada. Não era fácil porque a única árvore se erguia num lado e, tendo-se como falso centro, dividia assimetricamente o planalto. Diante da dificuldade o homem concedeu: “não era necessário enterrar no centro, eu também enterraria no outro, digamos, bem onde eu estivesse neste mesmo momento em pé”. Porque se tratava de dar ao acontecimento a fatalidade do acaso, a marca de uma ocorrência exterior e evidente — no mesmo plano das crianças na praça e dos católicos entrando na igreja — tratava-se de tornar o faro ao máximo visível à superfície do mundo sob o céu. Tratava-se de expor um fato, e de não lhe permitir a forma íntima e impune de um pensamento.
 À ideia de enterrar o cão onde estivesse nesse mesmo momento em pé — o homem recuou com uma agilidade que seu corpo pequeno e singularmente pesado não permitia. Porque lhe pareceu que sob os pés se desenhara o esboço da cova do cão.
Então ele começou a cavar ali mesmo com pá rítmica. Às vezes se interrompia para tirar e de novo botar os óculos. Suava penosamente. Não cavou muito, mas não porque quisesse poupar seu cansaço. Não cavou muito porque pensou lúcido: “se fosse para o verdadeiro cão, eu cavaria pouco, enterrá-lo-ia bem à tona”. Ele achava que o cão à superfície da terra não perderia a sensibilidade.
 Afinal largou a pá, pegou com delicadeza o cachorro desconhecido e pousou-o na cova.
 Que cara estranha o cão tinha. Quando com um choque descobrira o cão morto numa esquina, a ideia de enterrá-lo tornara seu coração tão pesado e surpreendido, que ele nem sequer tivera olhos para aquele focinho duro e de baba seca. Era um cão estranho e objetivo.
O cão era um pouco mais alto que o buraco cavado e depois de coberto com terra seria uma excrescência apenas sensível do planalto. Era assim precisamente que ele queria. Cobriu o cão com terra e aplainou-a com as mãos, sentindo com atenção e prazer sua forma nas palmas como se o alisasse várias vezes. O cão agora era apenas uma aparência do terreno.
Então o homem se levantou, sacudiu a terra das mãos, e não olhou nenhuma vez mais a cova. Pensou com certo gosto: acho que fiz tudo. Deu um suspiro fundo, e um sorriso inocente de libertação. Sim, fizera tudo. Seu crime fora punido e ele estava livre.
E agora ele podia pensar livremente no verdadeiro cão. Pôs-se então imediatamente a pensar no verdadeiro cão, o que ele evitara até agora. O verdadeiro cão que agora mesmo devia vagar perplexo pelas ruas do outro município, farejando aquela cidade onde ele não tinha mais dono.
 Pôs-se então a pensar com dificuldade no verdadeiro cão como se tentasse pensar com dificuldade na sua verdadeira vida. O fato de o cachorro estar distante na outra cidade dificultava a tarefa, embora a saudade o aproximasse da lembrança.
“Enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazias à tua”, pensou então com auxílio da saudade. “Dei-te o nome de José para te dar um nome que te servisse ao mesmo tempo de alma. E tu — como saber jamais que nome me deste? Quanto me amaste mais do que te amei”, refletiu curioso.
“Nós nos compreendíamos demais, tu com o nome humano que te dei, eu com o nome que me deste e que nunca pronunciaste senão com o olhar insistente”, pensou o homem sorrindo com carinho, livre agora de se lembrar à vontade.
“Lembro-me de ti quando eras pequeno”, pensou divertido, “tão pequeno, bonitinho e fraco, abanando o rabo, me olhando, e eu surpreendendo em ti uma nova forma de ter minha alma. Mas desde então, já começavas a ser todos os dias um cachorro que se podia abandonar. Enquanto isso, nossas brincadeiras tornavam-se perigosas de tanta compreensão”, lembrou-se o homem satisfeito, “tu terminavas me mordendo e rosnando, eu terminava jogando um livro sobre ti e rindo. Mas quem sabe o que já significava aquele meu riso sem vontade. Eras todos os dias um cão que se podia abandonar.”
“E como cheiravas as ruas!”, pensou o homem rindo um pouco, “na verdade não deixaste pedra por cheirar... Este era o teu lado infantil. Ou era o teu verdadeiro cumprimento de ser cão? - e o resto apenas brincadeira de ser meu? Porque eras irredutível. E, abanando tranquilo o rabo, parecias rejeitar em silêncio o nome que eu te dera.
“Às vezes, tocado pela tua acuidade, eu conseguia ver em ti a tua própria angústia. Não a angústia de ser cão que era a tua única forma possível. Mas a angústia de existir de um modo tão perfeito que se tornava uma alegria insuportável: davas então um pulo e vinhas lamber meu rosto com amor inteiramente dado e certo perigo de ódio como se fosse eu quem, pela amizade, te houvesse revelado. Agora estou bem certo de que não fui eu quem teve um cão. Foste tu que tiveste uma pessoa.”
“Mas possuíste uma pessoa tão poderosa que podia escolher: e então te abandonou. Com alívio abandonou-te. Com alívio sim, pois exigias — com a incompreensão serena e simples de quem é um cão heroico — que eu fosse um homem. Abandonou-te com uma desculpa que todos em casa aprovaram: porque como poderia eu fazer uma viagem de mudança com bagagem e família, e ainda mais um cão, com a adaptação ao novo colégio e à nova cidade, e ainda mais um cão? ‘Que não cabe em parte alguma’, disse Marta pratica. ‘Que incomodara os passageiros’, explicou minha sogra sem saber que previamente me justificava, e as crianças choraram, e eu não olhava nem para elas nem para ti, José. Mas só tu e eu sabemos que te abandonei porque eras a possibilidade constante de eu pecar o que, no disfarçado de meus olhos, já era pecado. Então pequei logo para ser logo culpado. E este crime substitui o crime maior que eu não teria coragem de cometer”, pensou o homem cada vez mais lúcido.
“Há tantas formas de ser culpado e de perder-se para sempre e de se trair e de não se enfrentar. Eu escolhi a de ferir um cão”, pensou o homem. “Porque eu sabia que esse seria um crime menor e que ninguém vai para o Inferno por abandonar um cão que confiou num homem. Porque eu sabia que esse crime não era punível.”
Sentado na chapada, sua cabeça matemática estava fria e inteligente. Só agora ele parecia compreender, em toda sua gélida plenitude, que fizera com o cão algo realmente impune e para sempre. Pois ainda não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e para as profundas traições.
O homem tirou os óculos, respirou, botou-os de novo.
Olhou a cova coberta. Onde ele enterrara um cão desconhecido em tributo ao cão abandonado, procurando enfim pagar a dívida que inquietantemente ninguém lhe cobrava. Procurando punir-se com um ato de bondade e ficar livre de seu crime. Como alguém da uma esmola para enfim poder comer o bolo por causa do qual o outro não comeu o pão.
Mas como se José, o cão abandonado, exigisse dele muito mais que a mentira: como se exigisse que ele, num último arranco, fosse um homem — e como homem assumisse o seu crime — ele olhava a cova onde enterrara a sua fraqueza e a sua condição.
E agora, mais matemático ainda, procurava um meio de não se ter punido. Ele não devia ser consolado. Procurava friamente um modo de destruir o falso enterro do cão desconhecido. Abaixou-se então, e, solene, calmo, com movimentos simples — desenterrou o cão. O cão escuro apareceu afinal inteiro, infamiliar com a terra nos cílios, os olhos abertos e cristalizados. E assim o professor de matemática renovara o seu crime para sempre. O homem então olhou para os lados e para o céu pedindo testemunha para o que fizera. E como se não bastasse ainda, começou a descer as escarpas em direção ao seio de sua família.
     ("Laços de Família", Rio de Janeiro, Rocco, 1998)

Encarnação involuntária
 Clarice Lispector
Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhecê-la. E essa intrusão numa pessoa, qualquer que seja ela, nunca termina pela sua própria auto-acusação: ao nela me encarnar, compreendo-lhe os motivos e perdôo. Preciso é prestar atenção para não me encarnar numa vida perigosa e atraente, e que por isso mesmo eu não queira o retorno a mim mesmo.
Um dia no avião…ah, meu Deus – implorei – isso não, não quero ser essa missionária!

Mas era inútil. Eu sabia que, por causa de três horas de sua presença, eu por vários dias seria missionária. A magreza e a delicadeza extremamente polida da missionária já haviam me tomado. É com curiosidade, algum deslumbramento e cansaço prévio que sucumbo à vida que vou experimentar por uns dias viver. E com alguma apreensão, do ponto de vista prático: ando agora muito ocupada demais com os meus deveres e prazeres para poder arcar com o peso dessa vida que não conheço – mas cuja tensão evangelical já começo a sentir. No avião mesmo percebo que já comecei a andar com esse passo de santa leiga: então compreendo como a missionária é paciente, como se apaga com esse passo que mal quer tocar o chão, como se pisar mais forte viesse prejudicar os outros. Agora sou pálida, sem nenhuma pintura nos lábios, tenho o rosto fino e uso aquela espécie de chapéu de missionária.
Quando eu saltar em terra provavelmente já terei esse ar de sofrimento-superado-pela-paz-de-se-ter-uma-missão. E no meu rosto estará impressa a doçura da esperança moral. Porque sobretudo me tornei toda moral. No entanto quando entrei no avião estava tão sadiamente amoral. Estava, não, estou! Grito-me eu em revolta contra os preconceitos da missionária. Inútil: toda a minha força está sendo usada para conseguir ser frágil. Finjo ler uma revista, enquanto ela lê a Bíblia.
Vamos ter uma descida curta em terra. O aeromoço distribui chicletes. Ela cora mal o rapaz se aproxima.
Em terra sou uma missionária ao vento do aeroporto, seguro minhas imaginárias saias longas e cinzas contra o despudor do vento. Entendo, entendo. Entendo-a, ah, como a entendo e ao seu pudor de existir quando está fora das horas em que cumpre sua missão. Acuso, como a missionariazinha, as saias curtas das mulheres, tentação para os homens. E, quando não entendo, é com o mesmo fanatismo depudorado dessa mulher pálida que facilmente cora à aproximação do rapaz que nos avisa que devemos prosseguir viagem.
Já sei que só daí a dias conseguirei recomeçar enfim integralmente a minha própria vida. Que, quem sabe, talvez nunca tenha sido própria, se não no momento de nascer, e o resto tenha sido encarnações. Mas não: eu sou uma pessoa. E quando o fantasma de mim mesma me toma – então é um tal encontro de alegria, uma tal festa, que a modo de dizer choramos uma no ombro da outra. Depois enxugamos as lágrimas felizes, meu fantasma se incorpora plenamente em mim, e saímos com alguma altivez por esse mundo afora.
Uma vez, também em viagem, encontrei uma prostituta perfumadíssima que fumava entrefechando os olhos e estes ao mesmo tempo olhavam fixamente um homem que já estava ficando hipnotizado. Passei imediatamente, para melhor compreender, a fumar de olhos entrefechados para o único homem ao alcance da minha visão intencionada. Mas o homem gordo que eu olhara para experimentar e ter a alma da prostituta, o gordo estava mergulhado no New York Times. E meu perfume era discreto demais.
Falhou tudo.


Tem coisa melhor do que ser brega?

Quem é que nunca teve um Marcelo, um Felipe, um Ricardo, um André ou um Alexandre na vida?Tudo bem, pode ser uma Juliana, uma Ana, uma Patrícia ou uma Aline...
Paquerar é bom, mas chega uma hora que cansa!
Cansa na hora que você percebe que ter 10 pessoas ao mesmo tempo é o mesmo que não ter nenhuma, e ter apenas uma, é o mesmo que possuir 10 ao mesmo tempo!
A "fila" anda, a coleção de "figurinhas" cresce, a conta de telefone é sempre altíssima. Mas e ai? O que isso te acrescenta? Nessas horas sempre surge aquela tradicional perguntinha: Por que aquela pessoa pela qual você trocaria qualquer programa por um simples filme com pipoca abraçadinho no sofá da sala não despenca logo na sua vida??? Se o tal "amor" é impontual e imprevisível que se dane! Não adianta: as pessoas são impacientes! São e sempre vão ser! Tem gente que diz que não é... "Eu não sou ansioso, as coisas acontecem quando tem que acontecer." Mentira!
Por dentro todo ser humano é igual: impaciente, sonhador, iludido... Jura de pé junto que não,mas vive sempre em busca da famosacara metade! Pode dar o nome que quiser: amor, alma gêmea, par perfeito, a outra metade da laranja... No fim dá tudo no mesmo. Pode soar brega, cafona... Mas é a realidade.
Inclusive o assunto "amor" é sempre cafonérrimo. Acredito que o status de cafona surgiu porque a grande maioria das pessoas nunca teve a oportunidade de viver um grande amor. Poucas pessoas experimentaram nesta vida a sensação de sonhar acordada, de dormir do lado do telefone, de ter os olhos brilhando, de desfilar com aquele sorriso de borboleta azul estampado no rosto...
Não lembro se foi o "Wando" ou se foi o "Reginaldo Rossi" que disse em uma entrevista que se a Marisa Monte não tivesse optado pelo "Amor I love you" e que se o Caetano não tivesse dito "Tô me sentindo muito sozinho.." eles não venderiam mais nenhum disco.
Não adianta, o publico gosta e vibra com o "brega".
Não adianta tapar o sol com a peneira. Por mais que você não admita: você ficou triste porque o Leonardo di Caprio morreu em "Titanic" e ficou feliz porque a Julia Roberts e o Richard Gere acabaram juntos em "Uma Linda Mulher"; existe pelo menos uma música sertaneja ou um "pagodinho" que te deixe com dor de cotovelo; quando você está solteiro e vê um casal aos beijos e abraços no meio da rua você sente a maior inveja; você já se pegou escrevendo o seu nome e o da pessoa pela qual você está apaixonado no espelho embaçado do banheiro, ou num pedacinho de papel; você já se viu cantando o mantra "Toca telefone toca" em alguma das sextas-feiras de sua vida, ou qualquer outro dia que seja; você já enfiou os pés pelas mãos alguma vez na vida e se atirou de cabeça numa "relação" sem nem perceber que você mal conhecia a outra pessoa e que com este seu jeito de agir ela te acharia um tremendo louco; você, assim como nos contos de fada, sonha em escutar um dia o tal "E foram felizes para sempre"
Bem , preciso continuar? Ok, acho que não... Negue o quanto quiser, mas sei que já passou por isso, e se não passou, não sabe o quanto esta perdendo...."O problema de resistir a uma tentação é que você pode não ter uma segunda chance"
"Falo a língua dos loucos, porque não conheço a mórbida coerência dos lúcidos."
Luís Fernando Veríssimo


A impontualidade do amor

Você está sozinho. Você e a torcida do Flamengo. Em frente a tevê, devora dois pacotes de Doritos enquanto espera o telefone tocar. Bem que podia ser hoje, bem que podia ser agora, um amor novinho em folha.
Trimmm! É sua mãe, quem mais poderia ser? Amor nenhum faz chamadas por telepatia. Amor não atende com hora marcada. Ele pode chegar antes do esperado e encontrar você numa fase galinha, sem disposição para relacionamentos sérios. Ele passa batido e você nem aí. Ou pode chegar tarde demais e encontrar você desiludido da vida, desconfiado, cheio de olheiras. O amor dá meia-volta, volver. Por que o amor nunca chega na hora certa?
Agora, por exemplo, que você está de banho tomado e camisa jeans. Agora que você está empregado, lavou o carro e está com grana para um cinema. Agora que você pintou o apartamento, ganhou um porta-retrato e começou a gostar de jazz. Agora que você está com o coração às moscas e morrendo de frio.
O amor aparece quando menos se espera e de onde menos se imagina. Você passa uma festa inteira hipnotizado por alguém que nem lhe enxerga, e mal repara em outro alguém que só tem olhos pra você. Ou então fica arrasado porque não foi pra praia no final de semana. Toda a sua turma está lá, azarando-se uns aos outros. Sentindo-se um ET perdido na cidade grande, você busca refúgio numa locadora de vídeo, sem prever que ali mesmo, na locadora, irá encontrar a pessoa que dará sentido a sua vida. O amor é que nem tesourinha de unhas, nunca está onde a gente pensa.
O jeito é direcionar o radar para norte, sul, leste e oeste. Seu amor pode estar no corredor de um supermercado, pode estar impaciente na fila de um banco, pode estar pechinchando numa livraria, pode estar cantarolando sozinho dentro de um carro. Pode estar aqui mesmo, no computador, dando o maior mole. O amor está em todos os lugares, você que não procura direito.
A primeira lição está dada: o amor é onipresente. Agora a segunda: mas é imprevisível. Jamais espere ouvir "eu te amo" num jantar à luz de velas, no dia dos namorados. Ou receber flores logo após a primeira transa. O amor odeia clichês. Você vai ouvir "eu te amo" numa terça-feira, às quatro da tarde, depois de uma discussão, e as flores vão chegar no dia que você tirar carteira de motorista, depois de aprovado no teste de baliza. Idealizar é sofrer. Amar é surpreender.
Luis Fernando Veríssimo

Beijos e abraços
Os franceses se beijam, e não apenas quando estão se condecorando. Mas dois franceses só chegam ao ponto de se beijar no fim de um longo processo de desinformalização do seu relacionamento, que começa quando um propõe ao outro que abandone o "vous", e eles passem a se tratar por "tu", geralmente depois de se conhecer por alguns anos. Não sei se existe um prazo certo para o "vous" dar lugar ao "tu", mas é um passo importante, e até ele ser dado o cumprimento entre os dois jamais passará de um seco aperto de mãos.
Os russos se beijam com qualquer pretexto e dizem que a progressão, lá, não é do aperto de mão para o abraço e o beijo, mas de beijos protocolares para beijos cada vez mais longos e estalados. Na Itália, os homens andam de braços dados na rua, sem que isso indique que são noivos, e o beijo entre amigos também é comum. Os anglo-saxões são mais comedidos e mesmo os americanos, que são ingleses sem barbatana, reagem quando você, esquecendo onde está, ameaça abraçá-los. Ninguém é mais informal que um americano, ninguém mais antifrancês na velocidade com que chega à etapa equivalente ao "tu" sem nenhum ritual intermediário, mas a informalidade não se estende à demonstração física. Até aquele nosso hábito de bater no braço do outro quando se aperta a mão, aquela amostra grátis de abraço, eles estranham.
Já nós somos da terra do abraço; mas também temos nossas hesitações afetivas. O brasileiro é expansivo, mas tem, ao mesmo tempo, um certo pudor dos seus sentimentos. O meio-termo encontrado é o insulto carinhoso.
Não sei se é uma característica exclusivamente brasileira, mas é uma instituição nacional.
- Seu filho da mãe!
- Seu cafajeste!
São dois amigos que se encontram.
- Não, Só me faltava encontrar você. Estragou meu dia.
- Este lugar já foi mais bem freqüentado...
Depois dos insultos, se abraçam com fúria. Os sonoros tapas nas costas - outra instituição brasileira - chegam ao limite entre a cordialidade e a costela partida.
Eles se adoram, mas que ninguém se engane. É amor de homem. Quanto maior a amizade, maior a agressão. E você pode ter certeza que dois brasileiros são íntimos quando põem a mãe no meio. A mãe é o último tabu brasileiro. Você só insulta a mãe do seu melhor amigo.
- Sua mãe continua na zona?
- Aprendendo com a sua.
- Dá cá um abraço!
E lá vêm os tapas.
Um estrangeiro despreparado pode levar alguns sustos antes de se acostumar com a nossa selvageria amorosa.
- Crápula!
- Vigarista!
- Farsante!
- My God! Eles vão se matar!
Não se matam. Se abraçam, às gargalhadas. Talvez ensaiem alguns socos nos braços ou simulem direitos no queixo. Mas são amigos. Depois de algum tempo o estrangeiro se acostuma com cenas como esta. Até acha graça.
- Olha aqueles dois se batendo. Até parece briga. Um está batendo na cara do outro. Devem ser muito amigos. Agora trocam pontapés. É enternecedor. Agora um pega uma pedra do chão e... Acho que é briga mesmo!
Às vezes é briga mesmo.
(VERISSIMO, Luis Fernando. O Estado de S. Paulo 09/11/1992.)