A literatura contemporânea tem abordado em tom mais incisivo a questão do preconceito. Vamos ler um conto de Marcelino Freire a esse respeito. Se é comum os brancos irem até uma favela e filmarem as coisas de lá, imagine se acontecesse o contrário:
Solar dos príncipes
(FREIRE, Marcelino. Contos negreiros. Rio de Janeiro: Record, 2005. pp.23-27)
Assinale a afirmativa INCORRETA sobre o conto:
A) O título da narrativa refere-se, provavelmente, ao nome do prédio que os negros desejam visitar;
B) O ponto de vista está centrado exclusivamente na primeira pessoa, em um dos negros que narra a história;
C) Os estereótipos de que o nordestino trabalha de porteiro e que negros das favelas têm nomes estrangeirados são mantidos no conto;
D) O conto ironiza as relações de classe e de raça, invertendo as situações de pesquisa ou documentação.
Quatro negros e uma negra pararam na frente deste prédio.
A primeira mensagem do porteiro foi: “Meu Deus!” A segunda: “O que vocês querem?” ou “Qual apartamento?” Ou “Por que ainda não consertaram o elevador de serviço?”
“Estamos fazendo um filme”, respondemos.
Caroline argumentou: “Um documentário”. Sei lá o que é isso, sei lá, não sei. A gente mostra o documento de identidade de cada um e pronto.
“Estamos filmando”.
Filmando? Ladrão é assim quando quer sequestrar. Acompanha o dia-a-dia, costumes, a que horas a vítima sai para trabalhar. O prédio tem gerente de banco, médico, advogado. Menos o síndico.
O síndico nunca está.
- De onde vocês são?
- Do Morro do Pavão.
- Vamos gravar um longa-metragem.
- Metra o quê?
Metralhadora, cano longo, granada, os negros armados até as gengivas. Não disse? Vou correr. Nordestino é homem. Porteiro é homem ou não é homem? Caroline dialogou: “A ideia é entrar num apartamento do prédio, de supetão, e filmar, fazer uma entrevista com o morador.”
O porteiro: “Entrar num apartamento”?
O porteiro: “Não”.
O pensamento: “Tô fodido.”
A ideia foi minha, confesso. O pessoal vive subindo o morro para fazer filme. A gente abre as nossas portas, mostra as nossas panelas, merda.
Foi assim que comprei uma câmara de terceira mão, marcamos, ensaiamos uns dias. Imagens exclusivas, colhidas na vida da classe média.
Caroline: “Querido, por favor, meu amor”. Caroline mostrou o microfone, de longe. Acenou com o batom, não sei.
Vou bem levar paulada do microfone? O microfone veio emprestado de um pai-de-santo, que patrocinou.
O porteiro apertou o apartamento 101, 102, 108. Foi mexendo em tudo quanto é andar. Estou sendo assaltado, pressionado, liguem para o 190, sei lá.
A graça era ninguém ser avisado. Perde-se a espontaneidade do depoimento. O condômino falar como é viver com carros na garagem, saldo, piscina, computador interligado. Dinheiro e sucesso. Festival de Brasília. Festival de Gramado. A gente fazendo exibição no telão da escola, no salão de festas do prédio.
Não.
A gente não só ouve samba. Não só ouve bala. Esse porteiro nem parece preto, deixando a gente preso do lado de fora. O morro tá lá, aberto 24 horas. A gente dá as boas-vindas de peito aberto.
Os malandrões entram, tocam no nosso passado. A gente se abre que nem passarinho manso. A gente desabafa que nem papagaio. A gente canta, rebola. A gente oferece a nossa coca-cola.
Não quer deixar a gente estrear a porra do porteiro. É foda. Domingo, hoje é domingo. A gente só quer saber como a família almoça. Se fazem a mesma festa que a nossa. Prato, feijoada, guardanapo. Caralho, não precisa o síndico. Escute só. A gente vai tirar a câmera do saco. A gente mostra que é da paz, que a gente só quer melhorar, assim, o nosso cartaz. Fazer cinema. Cinema. Veja Fernanda Montenegro, quase ganha o Oscar.
- Fernanda Montenegro não, aqui ela não mora.
E avisou: “Vou chamar a polícia”.
A gente: “Chamar a polícia?”
Não tem quem goste de polícia. A gente não quer esse tipo de notícia. O esquema foi todo montado num puta de sacrifício. Nicholson deixou de ir vender churro. Caroline desistiu da boate. Eu deixei esposa, cadela e filho. Um longa não, é só um curta. Alegria de pobre é dura. Filma. O quê? Dei a ordem: Filma.
Começamos a filmar tudo. Alguns moradores posando a cara na sacada. O trânsito que transita. A sirene da polícia. Hã? A sirene da polícia. Todo filme tem sirene de polícia. E tiro, muito tiro.
Em câmera violenta. Porra, Johnattan pulou o portão de ferro fundido. O porteiro trancou-se no vidro. Apareceu gente de todo tipo. E a ideia não era essa. Tivemos que improvisar.
Sem problema, tudo bem.
Na edição, a gente manda cortar.
(FREIRE, Marcelino. Contos negreiros. Rio de Janeiro: Record, 2005. pp.23-27)
Assinale a afirmativa INCORRETA sobre o conto:
A) O título da narrativa refere-se, provavelmente, ao nome do prédio que os negros desejam visitar;
B) O ponto de vista está centrado exclusivamente na primeira pessoa, em um dos negros que narra a história;
C) Os estereótipos de que o nordestino trabalha de porteiro e que negros das favelas têm nomes estrangeirados são mantidos no conto;
D) O conto ironiza as relações de classe e de raça, invertendo as situações de pesquisa ou documentação.