segunda-feira, 21 de março de 2011

Apimentadas 1


Capitu de verdade
Teria a mulher de José de Alencar traído seu marido com Machado de Assis?
Roberta Paixão

Capitu, a mulher com "olhos de ressaca", traiu ou não seu marido Bentinho? Mote do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, esse é o mais célebre enigma da literatura brasileira. Páginas e páginas de crítica já foram gastas na tentativa de esclarecê-lo. Aqueles que ficam com a resposta afirmativa aceitam as razões de Bentinho, que é o narrador do livro: seu filho não tem nada a ver com ele, mas é a cara de seu amigo Escobar. A semelhança seria a prova do adultério de Capitu. Em duas crônicas escritas na semana passada para um jornal paulista, o escritor Carlos Heitor Cony acrescentou lenha a essa fogueira. E que lenha! Segundo Cony, a traição do livro é baseada num episódio da vida do próprio Machado. Sua tese é de que o autor de Dom Casmurro cobiçou a mulher de um próximo, assim como o personagem Escobar, e com ela gerou um filho, que Cony identificou com as iniciais M. de A. "Eles tinham a mesma testa, o mesmo cabelo crespo e alguns tiques iguais", escreveu Cony, acrescentando que M. de A. sofria de epilepsia, como Machado. Desse modo, com uma única penada, ele não apenas teria resolvido o grande mistério de nossa literatura, como também exposto uma passagem escandalosa da vida do maior escritor brasileiro, um homem que primava pela discrição.
Nome aos bois – Para chegar a tais conclusões, Cony desenterrou fofocas quase esquecidas. Em seu primeiro texto, publicado na quarta-feira, ele disse ter recorrido a "crônicas daquele tempo". Citou como testemunhas o médico Afonso Mac-Dowell, que atendia vários acadêmicos, e o escritor Humberto de Campos. Mesmo utilizando o artifício das iniciais, ele dava a entender qual seria a identidade do tal filho misterioso: o diplomata Magalhães de Azeredo, pessoa a quem Machado dedicou uma amizade paternal. Mas num segundo texto, que foi publicado no sábado, Cony reconhece que sua fonte principal foi uma crônica do livro Diário Secreto, de Humberto de Campos. Cony diz que as iniciais podem não ser do diplomata, mas continua sustentando sua tese polêmica: o adultério de Dom Casmurro tem como fundamento experiências do próprio Machado de Assis. O que Cony não se atreveu a fazer foi dar o passo seguinte. Ou seja, dar nome aos bois e tornar ainda mais escabrosa toda essa história. Pois, se M. de A. não é Magalhães de Azeredo, só pode ser o escritor Mário de Alencar, filho do romancista José de Alencar e de Georgiana Cochrane. Em sua crônica, Humberto de Campos chega a escrever as iniciais do suposto marido traído: J. de A. Em outras palavras: dois dos principais literatos do século XIX teriam sido vértices de um triângulo amoroso. Se verdadeira a hipótese, não foi só no campo da literatura que o realismo de Machado deu cabo do romantismo de Alencar. O relacionamento entre Mário de Alencar, autor de pouca notoriedade, e Machado de Assis realmente era próximo. "Mário, que não se dava bem com José de Alencar, até se referia a Machado como pai em suas cartas", lembra o escritor Antonio Olinto, conhecedor da vida de ambos. Como ninguém vai se dispor a fazer um teste de DNA nos restos mortais dos escritores, a insinuação de Humberto de Campos, cacifada por Cony, dificilmente será provada. De qualquer forma, não deixa de ser uma ironia que se levante uma suspeita dessas em relação a Machado de Assis, um escritor que dizia que jamais escreveriam uma boa biografia sua, "porque ninguém é mais reservado nessa matéria do que eu".

                                  Humberto levantou a bola

Havia, realmente, nos dois, traços fisionômicos que corriam paralelos. E aquela afeição paternal de Machado de Assis, tão desconfiado nas suas amizades e, no entanto, tão ligado a M. de A., cuja presença na velhice não dispensava um só dia?

Meses depois, em uma das minhas visitas ao consultório de Afonso Mac-Dowell, meu médico e amigo, este me recebe exclamando:

– Se você chega dois minutos antes, encontraria aqui um colega seu, da Academia.

– Qual deles?

– O M... M. de A.

Sem a menor lembrança, no momento, das palavras de Goulart de Azevedo, falei-lhe do nervoso do M., o qual não saía à rua sem companhia de um ou dois filhos.

– Nervoso, só, não – atalhou o médico.

E com ares misteriosos:

– Eu lhe digo aqui com a devida reserva: o M. é epilético.

Essa informação pôs um raio de luz em minha dúvida. J. de A. jamais sofreu de epilepsia. Machado de Assis morreu dessa moléstia. Como explicar, pois, a epilepsia de M. de A.?

Mergulhei no oceano desse mistério, tateantes as mãos do meu pensamento. Dom Casmurro não será uma história verdadeira? Aquele amigo que trai o amigo, aquele filho que fica de uns amores clandestinos, não seriam páginas de uma autobiografia?

Trecho de crônica de Humberto de Campos, em que o autor insinua que Machado de Assis teve um caso com a mulher de José de Alencar

Revistas Veja 11/08/99

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