sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Questão de estilo 2


Os diferentes estilos
Paulo Mendes Campos

 Parodiando Raymond Queneau,  que  toma  um  livro  inteiro  para descrever de  todos  os  modos  possíveis  um  episódio  corriqueiro, acontecido em um ônibus de Paris, narra-se aqui, em diversas  modalidades de estilo, um fato comum da vida carioca, a saber: o corpo de  um  homem de quarenta anos presumíveis é encontrado de madrugada pelo vigia de uma construção, à margem da Lagoa Rodrigo de Freitas, não  existindo  sinais de morte violenta.
Estilo interjeitivo - Um cadáver!  Encontrado  em  plena  madrugada!  Em pleno bairro de  Ipanema!  Um  homem  desconhecido!  Coitado!  Menos  de quarenta anos! Um que morreu quando a cidade acordava! Que pena!
Estilo colorido- Na hora cor-de-rosa da  aurora,  à  margem  da cinzenta Lagoa Rodrigo de Freitas, um vigia de  cor  preta  encontrou  o cadáver de um homem branco, cabelos louros, olhos azuis, trajando  calça amarela, casaco pardo, sapato marrom, gravata branca com bolinhas azuis. Para este o destino foi negro.
Estilo antimunicipalista- Quando mais um dia de sofrimentos e desmandos nasceu para esta cidade  tão  mal  governada,  nas  margens imundas, esburacadas e fétidas da Lagoa Rodrigo de Freitas, e em cujos arredores falta água  há  vários  meses,  sem  falar  nas  freqüentes mortandades de  peixes  já  famosas,  o  vigia  de  uma  construção  (já permitiram, por debaixo do pano, a ignominiosa elevação de  gabarito  em Ipanema) encontrou o cadáver de um desgraçado morador desta  cidade  sem policiamento. Como não podia deixar de ser, o corpo ficou  ali  entregue às moscas que pululam naquele perigoso foco de epidemias. Até quando?
Estilo reacionário- Os moradores da Lagoa  Rodrigo  de  Freitas tiveram na manhã de hoje o profundo desagrado de deparar com  o  cadáver de um vagabundo que foi logo escolher para morrer  (de  bêbedo)  um  dos bairros mais elegantes desta cidade, como  se  já  não  bastasse  para enfear aquele local uma sórdida favela que nos envergonha aos olhos  dos americanos que nos visitam ou que nos dão a honra de residir no Rio.
Estilo então- Então o vigia de uma construção em  Ipanema,  não tendo sono, saiu então para passeio de madrugada.  Encontrou  então  o cadáver de um homem. Resolveu então procurar um guarda. Então o guarda veio e tomou então as providências necessárias. Aí então eu  resolvi  te contar isto.
Estilo áulico- À sobremesa, alguém falou ao  Presidente,  que na manhã de hoje o cadáver de um homem havia sido encontrado na Lagoa Rodrigo de Freitas. O Presidente exigiu imediatamente  que  um  de  seus auxiliares telegrafasse  em  seu  nome  à  família  enlutada.  Como  lhe informassem que a vítima ainda não fora identificada, S. Ex.a, com o seu estimulante bom humor, alegrou os presentes com uma das suas  apreciadas blagues.
Estilo schmidtiano- Coisa terrível é o encontro com um  cadáver desconhecido à margem de um lago triste à luz fria da aurora! Trajava-se com alguma humildade mas seus olhos  eram  azuis,  olhos  para  a  festa alegre colorida deste mundo. Era trágico vê-lo mort. Mas ele não estava ali, ingressara para sempre no reino inviolável e escuro da morte,  este rio um pouco profundo caluniado de morte.
Estilo complexo de Édipo-  Onde  andará  a  mãezinha  do  homem encontrado morto na Lagoa Rodrigo de Freitas? Ela que o  amamentou,  ela que o embalou em seus braços carinhosos?
Estilo preciosista- No crepúsculo  matutino  de  hoje,  quando fulgia solitária  e  longínqua  a  Estrela-d'Alva,  o  atalaia  de   uma construção civil, que perambulava insone pela orla Sinuosa e  murmurante de uma lagoa serena, deparou com a atra e lúrida visão de  um  ignoto  e gélido ser humano, já eternamente sem o hausto que vivifica.
Estilo Nélson Rodrigues - Usava gravata  de  bolinhas  azuis  e morreu!
Estilo sem jeito- Eu queria ter o dom da palavra, o gênio de um Rui ou o estro de um Castro Alves, para descrever o que se  passou  na manhã de hoje. Mas não sei escrever, porque nem todas as  pessoas  que têm sentimento são capazes de expressar esse sentimento. Mas eu gostaria de  deixar,  ainda que sem brilho literário, tudo aquilo que senti. Não sei se cabe aqui  a palavra sensibilidade. Talvez não caiba. Talvez seja uma  tragédia.  Não sei escrever mas o leitor poderá perfeitamente imaginar o que foi  isso. Triste, muito triste. Ah. se eu soubesse escrever.
Estilo feminino- Imagine  você,  Tutsi,  que  ontem  eu  fui  ao Sacha's, legalíssimo, e dormi tarde. Com o Tony. Pois logo  hoje,  minha filha, que eu estava exausta e tinha hora  marcada  no  cabeleireiro,  e estava também querendo dar uma passada na costureira, acho mesmo que vou fazer aquele plissadinho, como  o  da  Teresa,  o  Roberto  resolveu  me telefonar quando eu estava no melhor do sono. Mas o que era mesmo que eu queria te contar? Ah, menina, quando eu olhei da janela,  vi  uma  coisa horrível, um homem morto lá na beira da Lagoa. Estou tão  nervosa!  Logo eu que tenho horror de gente morta!
Estilo lúdico ou infantil- Na madrugada  de  hoje  por  cima,  o corpo de um homem por baixo foi encontrado por cima pelo  vigia  de  uma construção por baixo. A vítima por baixo não  trazia  identificação  por cima. Tinha aparentemente por cima a idade de quarenta anos por baixo.
Estilo concretista- Dead dead man man mexe  mexe  Mensch  Mensch MENSCHEIT.
Estilo  didático-  Podemos  encarar  a  morte  do   desconhecido encontrado morto à margem da Lagoa em três  aspectos:  a)  policial;  b) humano; e) teológico. Policial: o homem em sociedade; humano: o homem em si mesmo; teológico: o homem em Deus. Polícia e homem: fenômeno; alma  e Deus: epifenômeno. Muito simples, como os senhores vêem.
Leitura e produção de texto

1. Na crônica de Paulo Mendes Campos, podemos destacar a variedade de estilos empregada para narrar o mesmo fato. Identifique o que marca cada um dos estilos representados no texto - um recurso de pontuação específico ou a repetição de palavras, ou determinada expressão, por exemplo - e discuta o que é transmitido ao leitor.

2. Escolha um estilo - personagem real ou fictício - e narre a notícia.

Curiosidade

A palavra estilo é originária do latim stilu, a ponta de metal usada na Antiguidade para escrever na madeira. O termo deu origem a estilete e está associado a algo que deixa uma marca

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