sexta-feira, 22 de abril de 2011

Jargão

        O jargão é um dos tipos de língua grupal. É uma espécie de gíria profissional, daí falar-se em “economês”, “sociologês”, etc. Carlos Drummond de Andrade faz uma saborosa sátira ao jargão nas duas crônicas a seguir. Leia e se divirta com as palavras.


CONVERSA NA FILA
Carlos Drummond de Andrade

Conversavam na fila do cinema:
- E o seu caso com a Belmira?
- Encerrado, depois de um incidente onfálico. Observei-lhe que não ficava bem  ir à praia de tanga, quando ainda emergia daquele problema de cirsônfalo.
- E ela?
- Não gostou e rompemos. Nossa ligação teve um fim celíaco. E você e a Isadora?
- Mal, meu caro. Sabia que ela é hipnóbata? E o pior de tudo: com loxodromismo. De noite é aquela confusão no apartamento: batida nos móveis, objetos quebrados, e ela volta com acrodinia, com meralgia ou com podalgia.
- Que lástima.
- Depois, a Isadora se distingue por uma total aprosexia. Não adiante falar com ela que tome cuidado, que se proteja. Sua desatenção é mesmo esplâncnica
- Caso sério.
- Pois é. Mas vamos mudar de assunto. Viu aquele projeto de superclínicas integradas do Quintiliano? Ele está entusiasmadíssimo!
- Vi. Para mim, o Quintiliano é um caso de cianopsia empresarial. Vê lá se aquilo funciona.
- Por que não? Você é que me parece com tendência fotodisfórica. Não capta a evidência solar da iniciativa.
- Pode ser. Mas o Quintiliano é lalômano e dislálico há  um tempo, e isso me irrita, ainda mais ligado à somatomegalia projetista.
- Que tem isso? O essencial é que ele sabe ser sinérgico e sua doxomania semeia empreendimentos grandiosos.
- É. Mas isto, ao fim de algum tempo, fica tautométrico.
- Não interrompendo. Repare nessa garota à nossa frente.
- Já notei. Onicófaga.
- Nem por isso deixa de ser uma graça.
- Você acha? Quando se virou, notei que é leptorrínica.
- Quase nada!
- Sem falar na anisocoria, que captei de relance.
- Ora, nem se percebe!
- E a pele...
- Que tem a pele?
- Xilóide.
- Daqui a pouco você enxerga na coitadinha hipertricose, furfuração intensiva e até glossotriquia.
- Que é que você quer? Graças a Deus, não sofro nem nunca sofri de hebetação.
- Nem eu nunca lhe atribuí qualquer patose.
- Eu sei. Quero provar apenas que meu senso crítico-estético não se acha em catábase. Nada me escapa. A propósito. Corrija-se. Você está meio camptocósmico
- Dá para notar? Ainda bem que não estou opistótono, como o Ricardão.
- É mesmo. O Ricardão jamais se mantém ortostático. Nossa turma, hem?
- Realmente. O Guedes com aquele xiloma, o Tenório com o seu teratoma...
- A pobre da Zuenilda às voltas com a sua colpocele...
- E o Monjardim, cada vez mais anártrico, a ponto de não se entender mais o que ele quer dizer
A Fila chegou ao guichê, o papo acabou, e eu não entendi ponto e vírgula do que os dois disseram. E você?



TRADUÇÃO

 Ignaro cronista. Saúdo-o com simpatia!
Então, escutou aquela conversa na fila  do cinema e não entendeu patavina? Tão simples, meu caro. Se você tivesse uma tintura rala de latim e grego, em vez de passar pelas humanidades como motorista de ônibus pelo sinal vermelho, pegaria tudo que os dois médicos (eram médicos, está-se vendo) falavam sem afetação.
Usavam linguagem profissional, entende? E essa linguagem nada tem de hermética. Com o auxílio de afixos e radicais de origem grega e latina, forma palavras adequadas à expressão das diferentes partes do corpo humano e das doenças que as visitam. Por extensão, tal linguagem também se aplica em sentido figurado, sempre que isto possa ocorrer com propriedade.
Vou traduzir para você o papo dos doutores, e espero com isto prestar-lhe pequeno serviço cultural.
Chamemos os interlocutores de A e B. A pergunta a B, pelo caso deste com Belmira. B informa que está acabado, após incidente onfálico (relativo ao umbigo da moça). Ela tivera um problema de crisônfalo (dilatação varicosa das veias do umbigo), possivelmente fora operada; não obstante, queria exibir-se de tanga na praia. B não gostou, e deu-se o fim celíaco, isto é, relacionamento com o ventre.
Por sua vez, A conta que Isadora, sua garota, é sonâmbula (hipnóbata) e padece de loxodromismo: caminha sempre em direção oblíqua. Fácil prever os esbarrões que a todo momento, no escuro, dá nos móveis, e as conseqüências: volta para cama com dor nas extremidades (acronidia), notadamente nos pés (podalgia) e nas coxas (meralgia). Por último, a pobre sofre de aprosexia, é incapaz de fixar a atenção em alguma coisa , incapacidade tão profunda que pode ser chamada de esplâncnica, ou seja, visceral.
Os dois amigos mudam de assunto. A fala num colega, o Dr. Quintiliano, que pretende abrir uma superclínica, mas B acha que Quintiliano é um caso de cianopsia empresarial, vê tudo azul em matéria de empreendimentos. A acusa de tendência fotodisfórica, quer dizer, de intolerância à luz solar das iniciativas de Quintiliano. B retruca chamando Quintiliano de lalômano e dislálico ao mesmo tempo: ele fala demais, apesar de ter dificuldades no falar, além de cultivar a  somatomegalia projetista, o gigantismo de planos mirabolantes. Mas A defende-o, dizendo que ele sabe ser sinérgico, trabalhar em equipe, e sua doxomania (paixão de conquistar a glória) semeia realizações de vulto. Sim, admite B, mas isso acaba sendo monótono, tautométrico.
Outra virada. A acha uma graça a garota que está à frente dos dois. B, de relance, observa que ela rói e engole as unhas, é onicófaga. É leptorrínica (nariz estreito), além de acusar anisocoria, desigualdade nas pupilas. Só? Não! Tem pele xiloide, parecendo madeira. A espanta-se de tanta observação implacával, e diz que daí a pouco B enxergará na coitadinha hipertricose (excesso de pelos) e até essa coisa horrível que é língua coberta de pelos (glossotriquia), sem falar de furfuração excessiva: cabelo caspento. B declara que nunca teve hebetação, esse embotamento dos sentimentos e do intelecto na puberdade.
A não quis dizer que B é presa de alguma patose, anomalia ou doença. B, para provar ainda mais que suas faculdades de percepção não declinam (catábase) adverte o amigo: Corrija-se, está ficando corcunda (camptoscósmico). A reconhece, mas ainda bem que não chegou a opitótomo, como o Ricardão, com sua tetânica para trás. É, o Ricardão jamais se mantém em pé, ortostático, ereto.
Aí os dois passam em revista o precário estado de seus colegas. O Guedes enfrenta um xiloma, tumor duro, lenhos; o Dr. Tenório, às voltas com o seu tumor complexo, ou teratoma; a Dra Zuenilda tem colpocele (hérnia ou tumor vaginal); o Dr. Monjardim, já não se entende o que ele fala; de tão anártrico, não articula mais uma palavra.
Conclusão: os falantes usaram linguagem exata, objetiva, clássico-moderna, muito bem cunhada. Quem não a entendeu deve tomar cinco vocábulos de raiz grega e outros tantos de raiz latina, duas vezes por dia, após as refeições. Agite-os, antes de usá-los.
É só, e meus cumprimentos cordiais,
                                                               Antonio Crispim



Divirta-se com a charge Jargão



Leia também a matéria da revista Veja: Quando o negócio é tortura a língua.

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