segunda-feira, 18 de abril de 2011

Como ler as mídias?

Sírio Possenti

Pode-se ler jornais com diversos objetivos. Fundamentalmente, dois. Um é informar-se sobre fatos: quem ganhou o jogo, quem venceu as eleições, de quanto foi a inflação oficial, qual foi o último decreto que o governo assinou, quem foi beneficiado com um habeas corpus (para este último caso, de fato, nem é preciso ler nada…). O segundo objetivo é descobrir de que lado está o jornal (ou revista), isto é, que posições ideológicas defende em relação a certos temas.
Os editoriais são contra ou a favor. As reportagens fazem de conta que informam. Até informam, mas o fazem opinando, ou porque recortam os fatos ou porque só oferecem alguns deles, escondendo os outros. Meu melhor exemplo ainda é uma antiga matéria que informava que Erundina, então prefeita de S. Paulo, naquele dia, tinha recebido no gabinete a visita de seu oculista (o efeito era: eis o que ela fez ontem). Outro exemplo é a informação de quantos dias um governante passou fora do país durante seu mandato, sem informar o que foi fazer (o efeito é: passeia mais do que trabalha).
A maioria dos jornalistas pensa que só informa. E que nunca mentem. Fotografam e gravam, para mostrar que se atêm aos fatos. Mas uma foto congela um momento. Um adversário sempre sai mal na fotografia. A apelação é comum (quem não se lembra da foto de Hillary Clinton que mostrava sua calcinha?). O mesmo fazem as charges, por exemplo. Textos curtos são ainda mais radicais do que os longos em relação a essa característica de só mostrarem um lado.
O recorte é inevitável, diga-se. A única maneira de apresentar ao leitor um fato seria… apresentar o próprio fato. Funes, a personagem de Borges que tem memória excepcional, demora um dia para lembrar-se do que aconteceu durante um dia. Um jogo de futebol teria que ser sempre reprisado na íntegra, e, mesmo assim, teríamos o problema do ângulo captado pela câmara (diversas câmaras cobrindo diversos ângulos acabariam com o problema da parcialidade?).
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Volto ao PNDH – que comentei também na semana passada. Os jornais, aos poucos, estão falando mais dele. O leitor que não tiver lido o Projeto continua recebendo o documento por partes. O que não é ruim, embora demore muito, dê muito trabalho e se fique sempre com a sensação de receber recortes. Mas a situação está bem melhor dos que nos primeiros dias, quando o projeto parecia apenas coisa de esquerdistas vingativos…
O leitor fica sabendo, por exemplo, que determinadas questões estão contempladas no Projeto porque são decisões tomadas em fóruns mundiais, das quais o Brasil é signatário. Pode até ser denunciado em algum tribunal internacional se não as cumprir (por exemplo, sobre trabalho infantil ou escravo). Assim, o projeto nacional não poderia deixar de incluir certos temas. Por exemplo, ele deve considerar não anistiáveis os crimes contra a humanidade. É que mesmo as guerras são regidas por leis. Ninguém pode, por exemplo, torturar um inimigo preso (mesmo em “guerras” internas…), segundo as convenções que a maioria dos países assinou.
A imprensa quase nunca disse que, para cada ação proposta pelo Projeto, deverá haver um projeto de lei (busquei “projeto de lei” no texto e descobri que a expressão ocorre mais de vinte vezes). Isso significa, no mínimo: a) que nenhum jornalista ou leitor poderia dizer que o governo quer fazer tudo sozinho; b) que, em tese, este aspecto do projeto poderia ser destacado; se não foi, é porque não interessa…
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Acusa-se o PNDH de querer controlar os meios de comunicação. Eu sou contra. Se for verdade (quero ver o projeto de lei). Mas esses meios já não estão controlados? Se você mora em Porto Alegre, o que você pode ler além de Zero Hora? E você já leu Zero Hora? E se está em Salvador? O que você tem para ler? A Tarde. Mas não é um jornal controlado pela Família? Não respondam, por favor, que se pode ler a FolhaO Estadão de qualquer lugar pela Internet! Mas quem tem acesso à Internet?
Aceito e posso assinar todas as manifestações contrárias ao controle da mídia. Só não me digam que posso mudar de jornal ou de canal. Essa sugestão, que supostamente é garantia e prova da liberdade individual, é a nova versão da famosa frase de Maria Antonieta: eles não gostam dos nossos jornais? Que leiam o Le Monde!
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Chile, Argentina, Uruguai: todos levantaram fatos, que o Brasil teima em esconder, sobre suas ditaduras militares. Sem crise, sem ameaças de generais. Até em Honduras a Justiça vai processar seis generais que deportaram Zelaya. Desse jeito, só posso torcer para o Brasil num campo: o de futebol.
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Militares de vários escalões falaram o que quiserem dos jovens guerrilheiros da época do que eles chamam de revolução. Acusaram-nos de matar alguns oficiais e soldados e de sonhar com regimes autoritários. Disseram, para justificar-se, que se tratava de uma guerra. Cada cidadão toma o partido que quiser nesse debate. Justiça seja feita aos militares: eles nunca acusaram os guerrilheiros de terem prendido soldados ou outros cidadãos e os submetido a tortura. Nem eles foram capazes disso.
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Acabo de ler em El Pais: “La vieja (ya vieja, y sólo tiene veinte años) frase de Eugenio Scalfari sobre la esencia del oficio de periodista (“Periodista es gente que le dice a la gente lo que le pasa a la gente“) alcanza su punto culminante, su justificación mayor, en el trabajo que hacen los periodistas ahora en Haití”. Bem, então não há muitos…
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Há coisas que não compreendo: o carro flex não é um sucesso de vendas exatamente porque permite escolher o combustível mais barato? Então, por que a grita quando o álcool custa mais que a gasolina? Eu entenderia a reclamação de usuários de carros a álcool, mas não de carros flex.


Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia.
Fale com Sírio Possenti: siriopossenti@terra.com.br


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