segunda-feira, 18 de abril de 2011

Reforma ortográfica 2





OS ÚLTIMOS VÔOS

Aconteceu na semana retrasada: o Brasil foi o primeiro país a assinar o acordo ortográfico da Língua Portuguesa. Pronto desde 1990, o acordo pretende unificar o idioma, para que o português seja adotado como mais uma língua oficial em fóruns internacionais.
O fato de algumas palavras serem grafadas de maneira diferente na Inglaterra e nos Estados Unidos não impede que o inglês seja adotado como língua oficial em fóruns internacionais.
Além do mais, como diria o saudoso ministro Magri, as línguas de Portugal e do Brasil são “inunificáveis”. O jeito de falar dos brasileiros causa espanto aos portugueses. O jeito lusitano de falar nos provoca cócegas. Dois povos que alegam usar o mesmo idioma não podem divergir de maneira tão flagrante na mais essencial das frases: a declaração de amor. Enquanto todos os brasileiros descendem de um “eu te amo”, os portugueses descendem de um “amo-te”.
O acordo ortográfico nem vai fazer um estrago assim tão grande – vão cair os últimos acentos diferenciais e o trema. Quem não ligava para os acentos antes, vai continuar não ligando. Mas todos os que nutrem apreço, consideração, entusiasmo, amor, fetiche ou tara por acentos estão desde já inconsoláveis.
Eu, por exemplo, ainda não me recuperei sequer da reforma ortográfica de 1971. Eu mal tinha alfabetizado, mas morro de saudade de escrever “êles”, “almôço; côco. E os acentos graves – aquelas crases que pulavam do meio das palavras? “Cafèzinhos” tinha acento porque era feito em coador de pano. Quem estava “sòzinho” nunca se sentia completamente sozinho, porque tinha a companhia do acento.
Depois que acabarem com o trema, você vai ver a falta que ele faz. Os portugueses não precisam dele, porque lá todo mundo nasce sabendo se o certo é “questão” ou “qüestão”. Por aqui, a gente vai perder a chance de descobrir de uma vez por todas se o correto é “liquidação” ou “liqüidação”.
Mas nada se compara à tristeza do fim do chapeuzinho de “vôo”. Existe palavrinha mais bem desenhada? Parece mais um ideograma: “vôo” é uma palavra que flutua. Tire o circunflexo, e a palavra se esborracha no chão. Quando os “vôos” virarem “voos”, eu na certa vou passar a ter medo de avião.
Se nos próximos textos aqui desta página você notar um uso excessivo de palavras como vôo, Coréia e cinqüenta, tente entender: estou me despedindo delas. E pior você não sabe. No dia em que Portugal e Cabo verde chegarem a um consenso e a reforma virar lei, vai haver um hiperaquecimento da economia na indústria de dicionários, e o Copom vai ser obrigado a aumentar ainda mais as taxas de juros. (FREIRE, Ricardo. Época, São Paulo: Globo. 1 nov. 2004)

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