domingo, 1 de julho de 2012

Formação de palavras - Um chamado João


TEXTO PARA AS PRÓXIMAS 2 QUESTÕES.
(Unicamp 2008) UM CHAMADO JOÃO

João era fabulista?
fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?

Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?

(...)

Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
de precípites prodígios acudindo
a chamado geral?

(...)

Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
deve pegar.
                (Carlos Drummond de Andrade, em "Correio da Manhã", 22/11/1967, publicado em Rosa, J. G. "Sagarana". Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.)

1.
a) No título, "chamado" sintetiza dois sentidos com que a palavra aparece no poema. Explique esses dois sentidos, indicando como estão presentes nas passagens em que "chamado" se encontra.
b) Na primeira estrofe do poema, "fábula" é derivada em "fabulista" e "fabuloso". Mostre de que modo a formação morfológica e a função sintática das três palavras contribuem para a formação da imagem de Guimarães Rosa.

2. Na segunda estrofe, há dois processos muito interessantes de associação de palavras. Em "inenarrável/narrada" encontramos claramente um processo de derivação. Em "disfarçar/farçar", temos a sugestão de um processo semelhante, embora "farçar" não conste dos dicionários modernos.

a) Relacione o significado de "inenarrável" com o processo de sua formação; e o de "farçar", na relação sugerida no poema, com "disfarçar".
b) Explique como esses processos contribuem na construção dos sentidos dessa estrofe.

Respostas:
1. a) Em "Um estranho chamado João", a palavra "chamado" é um adjetivo cujo sentido é o mesmo das expressões "que se chama", "que se denomina", "que se nomeia", "que pode ser chamado de". No último verso da terceira estrofe ([acudindo] "a chamado geral"), "chamado" é um substantivo que representa o ato de chamar a atenção, de pedir ajuda, fazer uma convocação. Então, o título do poema - "Um chamado João" - explora o duplo sentido que a palavra "chamado" tem no poema.

b) Os termos "fabulista" e "fabuloso" podem ser considerados derivações sufixais de "fábula". O sufixo "-ista" designa aquele que pratica uma atividade ("fabulista" é quem produz fábulas), enquanto o sufixo "-oso" forma substantivos a partir de adjetivos, produzindo um efeito de sentido de intensificação ("fabuloso" é o que ultrapassa a imaginação e, por extensão de sentido, que é admirável, incrível, fantástico). Pode-se observar que o poema de Drummond começa classificando Rosa como um produtor de fábulas, para depois valorizá-lo como um escritor fabuloso e, por fim, tomá-lo como a própria fábula, como se autor e obra se fundissem numa coisa só. Essas três palavras possuem a mesma função sintática - predicativo do sujeito - e têm a mesma origem, produzindo, no plano sintático e morfológico, um efeito de repetição, de reiteração, de corroboração.

2-  a) No primeiro caso, a palavra "inenarrável" significa "o que não pode ser narrado". A idéia de negação está no prefixo "in-" (derivação prefixal). Porém, o elemento ao qual se junta o prefixo é o adjetivo "enarrável", que os dicionários, na sua maioria, não costumam registrar. A palavra geralmente usada é "narrável", o que resulta em "inarrável". Isso ocorre por haver dois verbos, "narrar"  e "enarrar", com o mesmo sentido.
No segundo caso, como o significado de "disfarçar" é "encobrir", "ocultar", "tapar", o vocábulo primitivo do qual ele seria formado, por processo de derivação prefixal, seria "farçar", que tem como significado oposto "revelar", "manifestar". Mas essa velação não é absoluta, já que a semelhança sonora entre "farçar" e "farsa" sugeriria que João é capaz de dizer o indizível, fazendo com que o mistério do "que não ousamos compreender" permaneça vivo em sua literatura.

b) Na segunda estrofe, a idéia pretendida é a de que João consegue realizar o impossível. O processo de derivar um vocábulo de outro "inexistente", que se observa nos pares inenarrável/enarrável e disfarçar/farçar, mostra o poder que o ficcionista tem de realizar o "irrealizável".

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