TEXTO PARA AS PRÓXIMAS 2 QUESTÕES.
(Unicamp 2008) UM CHAMADO JOÃO
João era fabulista?
fabuloso?
fábula?
Sertão místico disparando
no exílio da linguagem comum?
Projetava na gravatinha
a quinta face das coisas
inenarrável narrada?
Um estranho chamado João
para disfarçar, para farçar
o que não ousamos compreender?
(...)
Mágico sem apetrechos,
civilmente mágico, apelador
de precípites prodígios acudindo
a chamado geral?
(...)
Ficamos sem saber o que era João
e se João existiu
deve pegar.
(Carlos
Drummond de Andrade, em "Correio da Manhã", 22/11/1967, publicado em
Rosa, J. G. "Sagarana". Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.)
1.
a) No título,
"chamado" sintetiza dois sentidos com que a palavra aparece no poema.
Explique esses dois sentidos, indicando como estão presentes nas passagens em
que "chamado" se encontra.
b) Na primeira estrofe do
poema, "fábula" é derivada em "fabulista" e
"fabuloso". Mostre de que modo a formação morfológica e a função
sintática das três palavras contribuem para a formação da imagem de Guimarães
Rosa.
2. Na segunda estrofe, há dois
processos muito interessantes de associação de palavras. Em
"inenarrável/narrada" encontramos claramente um processo de
derivação. Em "disfarçar/farçar", temos a sugestão de um processo
semelhante, embora "farçar" não conste dos dicionários modernos.
a) Relacione o significado de
"inenarrável" com o processo de sua formação; e o de
"farçar", na relação sugerida no poema, com "disfarçar".
b) Explique como esses
processos contribuem na construção dos sentidos dessa estrofe.
Respostas:
1. a) Em "Um estranho chamado João", a palavra
"chamado" é um adjetivo cujo sentido é o mesmo das expressões
"que se chama", "que se denomina", "que se
nomeia", "que pode ser chamado de". No último verso da terceira
estrofe ([acudindo] "a chamado geral"), "chamado" é um
substantivo que representa o ato de chamar a atenção, de pedir ajuda, fazer uma
convocação. Então, o título do poema - "Um chamado João" - explora o
duplo sentido que a palavra "chamado" tem no poema.
b) Os termos "fabulista" e "fabuloso"
podem ser considerados derivações sufixais de "fábula". O sufixo
"-ista" designa aquele que pratica uma atividade
("fabulista" é quem produz fábulas), enquanto o sufixo
"-oso" forma substantivos a partir de adjetivos, produzindo um efeito
de sentido de intensificação ("fabuloso" é o que ultrapassa a
imaginação e, por extensão de sentido, que é admirável, incrível, fantástico).
Pode-se observar que o poema de Drummond começa classificando Rosa como um
produtor de fábulas, para depois valorizá-lo como um escritor fabuloso e, por
fim, tomá-lo como a própria fábula, como se autor e obra se fundissem numa
coisa só. Essas três palavras possuem a mesma função sintática - predicativo do
sujeito - e têm a mesma origem, produzindo, no plano sintático e morfológico,
um efeito de repetição, de reiteração, de corroboração.
2- a) No primeiro
caso, a palavra "inenarrável" significa "o que não pode ser
narrado". A idéia de negação está no prefixo "in-" (derivação
prefixal). Porém, o elemento ao qual se junta o prefixo é o adjetivo
"enarrável", que os dicionários, na sua maioria, não costumam
registrar. A palavra geralmente usada é "narrável", o que resulta em
"inarrável". Isso ocorre por haver dois verbos,
"narrar" e
"enarrar", com o mesmo sentido.
No segundo caso, como o significado de "disfarçar"
é "encobrir", "ocultar", "tapar", o vocábulo
primitivo do qual ele seria formado, por processo de derivação prefixal, seria
"farçar", que tem como significado oposto "revelar",
"manifestar". Mas essa velação não é absoluta, já que a semelhança
sonora entre "farçar" e "farsa" sugeriria que João é capaz
de dizer o indizível, fazendo com que o mistério do "que não ousamos
compreender" permaneça vivo em sua literatura.
b) Na segunda estrofe, a idéia pretendida é a de que João
consegue realizar o impossível. O processo de derivar um vocábulo de outro
"inexistente", que se observa nos pares inenarrável/enarrável e
disfarçar/farçar, mostra o poder que o ficcionista tem de realizar o "irrealizável".
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